Jornalista: Cláudia Collucci
27/10/19 - “É uma tristeza constante, que não passa. Eu não vejo futuro. O agora é frustrante e o amanhã parece que nem vai acontecer. Você tenta se agarrar em alguma coisa, mas parece que não há nada que valha a pena.”
A fala contundente é de Laís (o nome é fictício), 14. Aluna do nono ano de um colégio particular na zona sul de São Paulo, ela tem depressão grave e tentou o suicídio há um mês, após sucessivos episódios de automutilação iniciados aos 12 anos.
Após três lavagens gástricas e quatro dias no hospital, Laís segue agora em internação domiciliar. É cuidada pela mãe Rosângela, 38, servidora pública, que a vigia o tempo todo.
“É um medo permanente. Dá uma enorme sensação de impotência, porque nada do que faço parece ser o bastante”, afirma a mãe com os olhos marejados. A menina também é acompanhada por psicólogo, psiquiatra e usa antidepressivo e ansiolítico.
O caso de Laís é um exemplo de um problema que tem despertado preocupação nos profissionais de saúde: o aumento do número de internações de crianças e adolescentes por transtornos mentais.
Após estabilização nos patamares das taxas dessas hospitalizações nos últimos cinco anos, em 2018 houve um salto. Entre crianças de 10 e 14 anos, a taxa passou de 14 para 19 por 100 mil (36% de aumento). Na faixa etária dos 15-19 anos, foi de 75 para 85 por 100 mil no mesmo período (alta de 12%).
Os dados obtidos pela Folha são do Ministério da Saúde e foram extraídos de levantamento da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatra) sobre internações psiquiátricas infantojuvenis.
Nos primeiros anos, porém, o sistema de notificação estava em processo de consolidação, o que pode comprometer a análise.
Para os especialistas, o problema é complexo e não pode ser explicado por um só fator. Uma hipótese é de que as tentativas de suicídio, que invariavelmente demandam internações, possam estar impulsionando esse aumento.
Entre 2013 e 2017 (os dados de 2018 não estão consolidados, mas apontam aumento), o crescimento das notificações de tentativas de suicídio entre crianças de 10 a 14 anos foi de 225% (de 1.719 casos para 5.596). Entre 15 e 19 anos, de 192% (de 4.605 para 13.443 casos).
Em nota, o Ministério da Saúde diz que, apesar do crescimento registrado, do ponto de vista epidemiológico não dá para dizer que há uma tendência de aumento (seria necessária uma série histórica maior para tal).
O ministério afirma que tem buscado atuar na prevenção da saúde mental, atendendo precocemente adolescentes nos serviços de saúde da atenção primária ou mesmo na Rede de Atenção Psicossocial (Raps) para evitar a evolução para quadros mais graves e que precisem de internação.
A rede privada não possui dados de internações psiquiátricas por faixa etária, mas a percepção de profissionais é de que também haja uma escalada. Entre outras hipóteses para o crescimento estão o aumento do diagnóstico, mais encaminhamentos para internação e uma eventual alta real da prevalência.
“Há um problema social que está se refletindo na saúde mental dos adolescentes. O mesmo ocorre em outros países. As redes sociais têm influenciado muito no comportamento”, diz a médica Fátima Marinho, do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Para ela, que foi responsável pelos sistemas de informação do ministério até 2018, o aumento de internações, das tentativas de suicídio e de suicídios são sinais de alertas.
Segundo dados da OMS (Organização Mundial de Saúde), a taxa de suicídios aumentou 7% no Brasil, ao contrário do índice mundial, que caiu 9,8%, nos últimos sete anos.
Entre jovens de 15 a 19 anos, é segunda causa de morte entre as meninas (após as maternas) e terceira em meninos (após acidentes de trânsito e violência interpessoal).
“Na clínica, é comum ouvir crianças e adolescentes que tentaram o suicídio se referindo a alguém conhecido que tentou ou fez. Quando se fala mais sobre o assunto, também tendem a aparecer mais casos”, diz a psicóloga Janaína Lopes Diogo, que atua nas redes pública e privada em São Paulo.
O psiquiatra Rodrigo Ramos, do departamento de saúde mental da Santa Casa de São Paulo, acredita que muitos casos de 2017 estejam relacionadas ao jogo da “baleia azul”, que desafiava participantes à automutilação e até ao suicídio, e ao seriado “13 Reasons Why”, da Netflix.
Dois estudos mostraram que o suicídio entre jovens americanos aumentou nos meses seguintes ao lançamento da série. É o chamado suicídio por imitação.
Mas, segundo Ramos, o mais frequente é que as tentativas de suicídio estejam associadas a quadros depressivos. “O adolescente deprimido é impulsivo, irritado, tem baixa autoestima”, diz o médico.
Estudos internacionais demonstram que os níveis de depressão têm aumentado na adolescência, chega a 5% por volta dos 15 anos, com maior prevalência entre as meninas.
A pediatra Liubiana Arantes de Araújo, da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), explica que a saúde mental de crianças e adolescentes depende de uma base genética que é moldada pelo ambiente.
Depressão materna, história familiar de depressão ou de tentativa de suicídio e estresse tóxico (crianças que sofrem abusos ou mesmo negligência afetiva) estão entre os fatores que podem desencadear esses transtornos.
Ela diz que o estresse tóxico afeta crianças de todos os níveis sociais, “desde os que vivem em pobreza extrema até os que têm muitas cobranças, agendas de miniexecutivos e pais pouco presentes.”
Para a pediatra, o excesso de tecnologia tem afastado crianças das relações humanas. “Ficam isoladas, muito tempo diante da tela, expostas a conteúdos violentos. Muitos praticam automutilação.”
Isso tudo, diz ela, leva os mais jovens a idealizarem uma vida perfeita e maravilhosa só existe nas redes sociais. “A vida normal do dia a dia passa a ser entediante, vira um abismo entre o real e o idealizado.”
A psicóloga Nathalia Pereira, especialista em saúde da família e comunidade da rede Amil, concorda: “essas crianças têm tido uma expectativa muito grande do outro, no âmbito familiar e social. Ao entrar em contato com o que é real, isso não se sustenta e gera frustração muito grande”.
O resultado tem se refletido nos consultórios. “Eles chegam com baixíssima autoestima, costumam dizer: ‘sou uma porcaria, atrapalho minha família, não consigo tirar boas notas’”, diz Ramos.
Segundo ele, outro fator que tem levado a mais internações é a exposição precoce ao uso de substâncias psicoativas (como a maconha) e ao álcool. Na faixa etária entre 10 e 14 anos, as internações no SUS por essas causas em nove anos passaram de 510 para 717, salto de 41%. O uso de álcool teve aumento semelhante, de 58 para 81 (40%).
“As substâncias psicoativas estão ligadas ao aumento da depressão e de outras doenças mentais. O uso precoce da maconha aumenta em seis vezes as chances de esquizofrenia”, afirma Rodrigo Ramos.
Segundo Liubiana Araújo, isso tudo vai interferir diretamente no futuro dessas crianças. “Diminui a capacidade de uma boa educação e de trabalho. Impacta até no índice de desenvolvimento de um país. Não é uma questão só individual. É de toda a sociedade.”
Para ela, o caminho é a prevenção. “Até os dois anos, a criança não deve ter acesso à tela. De dois a cinco, uma hora por dia, e acima de cinco, duas horas. Os pais também precisam sair do celular, parar de terceirizar a criança.”
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