O Ministério da Saúde deve desperdiçar até R$ 3,8 bilhões nos próximos 10 anos com a compra de nove medicamentos por conta de um detalhe da legislação que permite que a patente de um remédio (registro de exclusividade) dure mais do que a média mundial.
Um dos medicamentos analisados, o humira, que custou em média R$ 713 ao governo nos últimos cinco anos, poderia ser comprado hoje pela metade do preço se a patente, que venceu em 2017, não tivesse sido estendida por mais três anos pela lei brasileira.
A exclusividade garantida aos laboratórios impede a entrada de genéricos no mercado, que são mais baratos.
Os dados fazem parte de um estudo do Grupo de Economia da Inovação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que analisou compras públicas de nove medicamentos, indicados para o tratamento de câncer, hepatite C, reumatismo e doenças raras (veja detalhes abaixo).
Entenda o funcionamento das patentes
O responsável por conceder patentes no Brasil é o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). Enquanto o tempo padrão das licenças farmacêuticas é de 20 anos em outros países, a duração média no Brasil é de 23 anos. Há casos que passam dos 28 anos.
Isso acontece porque um artigo da lei brasileira de patentes autoriza prazo extra de monopólio no caso de o Inpi levar mais de 10 anos para analisar o pedido.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é responsável por liberar os remédios para venda no Brasil, um processo que ocorre sem relação com a concessão de patente.
O monopólio de comercialização de um remédio está garantido a partir do momento em que a empresa entra com pedido de exclusividade. A indústria farmacêutica costuma fazer esse pedido antes de o medicamento estar desenvolvido. Assim, quando ele fica pronto para a venda, o monopólio já está garantido.
Comprimido de R$ 258 custa R$ 2,95 fora do Brasil
Um dos medicamentos analisados pela UFRJ é o sofosbuvir, indicado para a hepatite C, doença que atinge 71 milhões de pessoas no mundo e mata 400 mil por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
No Brasil, o Ministério da Saúde gastou mais de R$ 1,7 bilhão com o sofosbuvir desde 2014, pagando em média R$ 258 por comprimido, segundo o levantamento da UFRJ.
Em alguns países, porém, ele é vendido por R$ 2,95. O pedido de patente no Brasil foi apresentado em março de 2008, mas após 11 anos a análise ainda não foi concluída. A UFRJ estima em R$ 346 milhões o custo extra ao Ministério da Saúde para cada ano de prorrogação da patente do sofosbuvir.
Desenvolvido pela Gilead, o sofosbuvir cura a hepatite C em 95% dos casos.
Hoje sai por R$ 69, poderia custar R$ 16
Outro caso estudado pelos pesquisadores é o do dasatinibe, usado no tratamento de leucemia. Nos últimos cinco anos, o Ministério da Saúde gastou em média R$ 69 para cada comprimido.
Na Índia, a versão genérica é vendida a R$ 16. O remédio similar poderia chegar ao Brasil em abril de 2020, quando a patente do dasatinibe completa 20 anos. Porém, o mercado nacional continuará fechado até novembro de 2028, porque o Inpi demorou 18 anos para analisar o pedido.
319 funcionários para 160 mil pedidos de patente
O Inpi concedeu 683 patentes farmacêuticas desde 1997, das quais 630 (92%) foram beneficiadas com a prorrogação acima dos 20 anos, revela o estudo obtido pela Repórter Brasil.
A prorrogação de patentes farmacêuticas tornou-se padrão no Brasil por dois motivos: o alto número de pedidos apresentados pelas empresas e o baixo número de examinadores do Inpi.
Atualmente existem 319 funcionários responsáveis por analisar 160 mil pedidos de patente de todos os setores da economia – ou 501 por examinador, segundo o instituto.
O Inpi reconhece que o número de examinadores é baixo e que “a demora na análise de pedidos de patentes tem levado à extensão do prazo de proteção”.
O órgão informou ainda que começou em julho um plano para reduzir o prazo médio de análise de patentes para cinco anos: a meta é diminuir a pilha de pedidos em 80% até 2021.
Estratégias da indústria farmacêutica
Já o excesso de pedidos de patentes farmacêuticas foi investigado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). No caso do adalimumabe (princípio ativo do humira, fabricado pela Abbvie), o estudo identificou 33 pedidos apresentados ao Inpi.
Além de amontoar a pilha de trabalho do Inpi, os múltiplos pedidos para um mesmo princípio ativo são uma estratégia da indústria farmacêutica para “perpetuar a exclusividade de um produto”, diz a farmacêutica Roberta Dorneles da Costa, pesquisadora da UERJ e uma das autoras do estudo da Fiocruz.
“Outra estratégia para ampliar o monopólio são os processos judiciais, porque enquanto não há uma decisão final, os concorrentes ficam afastados”, completa a economista Julia Paranhos, coordenadora do estudo da UFRJ.
Ao defender a prorrogação das patentes, a Interfarma (representante das empresas estrangeiras no Brasil) diz que os laboratórios não aproveitam comercialmente os 20 anos de monopólio, já que os primeiros 10 anos são dedicados a pesquisas e testes para criar o medicamento. A entidade diz que os investimentos farmacêuticos são altos e que a sustentabilidade do negócio “requer a manutenção do direito à propriedade industrial”.
Para a Abifina, representante das farmacêuticas brasileiras, algumas empresas usam a lei brasileira para prorrogar “artificialmente” o prazo das patentes.
O Ministério da Saúde disse à Repórter Brasil que se pronunciará após a publicação do estudo.
O que diz a lei
A questão no Brasil gira em torno da Lei de Propriedade Industrial, aprovada em 1996, sob lobby do setor farmacêutico.
O artigo 40 da lei autoriza tempo extra às patentes caso o Inpi demore mais de 10 anos para analisar um pedido. Atualmente, o órgão leva em média 13 anos para concluir uma análise do setor farmacêutico. Como comparação, na Europa e nos Estados Unidos, a análise dura em média dois anos, enquanto no Chile e no México é de quatro anos, segundo levantamento da UFRJ.
O polêmico artigo 40 da lei está em debate no Supremo Tribunal Federal, onde uma ação de 2016 da Procuradoria-Geral da República pede o fim da prorrogação de patentes no Brasil, mas não há prazo para o julgamento.
Fonte: UOL
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