O Globo
Colunista: Ligia Bahia
06/11/19 - Após tornarem-se tendencialmente residuais ou decrescentes, flagelos como a sífilis, a peste medieval, e a Aids, a epidemia do século XX, retornaram ao topo das estatísticas dos problemas de saúde. Os modos de transmissão e riscos populacionais dessas e outras doenças sexualmente transmissíveis são conhecidos, e existe tratamento. A incidência é muito maior entre homens que fazem sexo com homens, usam drogas injetáveis, profissionais do sexo e transexuais. Diagnóstico, cura e controle estão relativamente disponíveis; reconhecer e buscar reduzir preconceitos contra gays, usuários de drogas e prostitutas, nem sempre.
Para reduzir a transmissão dessas antigas e modernas doenças, é preciso sair do armário. O Ministério da Saúde acerta ao divulgar informações sobre aumento de casos, mas erra na propaganda. A campanha “Não vacile, use camisinha” é baseada no terror, tenta assustar os jovens, com imagens de efeitos visíveis de algumas doenças no corpo. O medo pode influenciar comportamentos. Mas está comprovado que a intenção de engajar as pessoas em experiências com menor risco à saúde requer apelos às emoções positivas relativas ao sexo.
Cenas de pavor podem contribuir para suscitar intenções de mudar atitudes, mas não as decisões que são tomadas em situações concretas. Além disso, usar camisinha não é, em muitas circunstâncias, uma iniciativa individual. Diálogo difícil ou expectativas negativas sobre a reação de parceiros influenciam escolhas. O clima, a excitação do momento, é uma barreira mencionada para não usar preservativos. Programas que enfatizam os perigos do sexo desprotegido são menos efetivos do que os que estimulam o aumento do prazer sexual com camisinha ou baseados na concepção de que sexo seguro é bom. Querer usar preservativos é diferente de sentir que deveria usar e não conseguir.
Políticas de saúde têm que sair do armário. Preconceitos contribuem para a disseminação de doenças graves em adultos e em bebês, gravidez indesejada e infertilidade. Convicções pessoais sobre a atribuição de culpa pelo risco e doença a indivíduos que não souberam se controlar são fundamentos equivocados. As evidências comprovam que a invocação de estereótipos tende a ser respondida defensivamente ou com desdém por parte dos segmentos populacionais que necessitam de apoio para afirmar identidades e desejos bem como prevenir adoecimento.
Durante a campanha presidencial não faltaram promessas de censura da “mamadeira” alusiva ao pênis e à camisinha. Está aí o resultado. Uma propaganda que não menciona Aids e gravidez. Direciona-se aos jovens em geral, e não às populações-chave; enfatiza o pânico e o nojo a sintomas (que nem sempre ocorrerão, especialmente em mulheres), e oculta as relações amorosas e sexuais, dificultando a adesão às práticas seguras. A substituição de diretrizes técnicas por ameaças instaura a prepotência.
Quando interrogado sobre como resolver o problema, o ministro da Saúde subiu o tom. Respondeu que pretende punir, sem dizer como, os que recusarem tratamento. O alinhamento radical aos preceitos de costumes pretensamente castos pode desequilibrar os frágeis suportes políticos de uma área às voltas com cortes de gastos, adiamento sine die do pagamento da dívida do presidente Bolsonaro, de instituir uma carreira para médicos e medidas polêmicas na atenção básica do SUS.
Conservadorismo nos costumes não combina com o anúncio de autodeclaradas inovações, como o financiamento diferenciado por status social e não de saúde e mobilização de enfermeiros para realizar atos considerados de competência exclusiva de médicos. Mexer e remexer na saúde sem objetivo de evitar e atenuar doenças é indício de um outro tipo de praga, a irresponsabilidade administrativa. A infecção inicia com a obstrução do debate e evolui para os delírios de perseguição e grandeza. Medidas simples — como estudar as experiências internacionais e avaliar com acurácia os efeitos da atual campanha para doenças sexualmente transmissíveis — restabelecem conexões com a realidade.
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