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Por Cláudia Collucci
Folha de S.Paulo

30/09/19 - Os estudos sobre Cannabis medicinal avançaram nas últimas três décadas, mas ainda é preciso um corpo maior de evidências que ateste a eficácia e a segurança dos tratamentos, segundo revisões sistemáticas da Cochrane, rede de cientistas independentes que investiga a efetividade de terapias.

Entre 1988 e 2018, o número de estudos sobre o tema passou de 33 para 1.015. Entre os casos estão esquizofrenia, epilepsia, demências, dores crônicas, náuseas e vômitos causados pela quimioterapia.

Porém, a maioria das pesquisas envolve um número pequeno de pacientes, com pouco tempo de acompanhamento e sem um controle rigoroso de variáveis que podem influenciar nos resultados.

O uso do CBD, um dos compostos da maconha que não apresenta efeito psicoativo, em casos graves de epilepsia é a aplicação com maior número de estudos, alguns desde a década de 1980, como um trabalho de Elisaldo Carlini, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), com 16 pacientes que demonstrou eficácia da utilização da substância para o controle de crises epilépticas.

Em 2018, a FDA (agência americana reguladora de remédios) aprovou o Epidiolex, primeiro medicamento à base de CBD para casos de epilepsia —mais especificamente, tratamento das síndromes de Lennox-Gastaut e de Dravet.

Sua eficácia foi comprovada a partir de três estudos, com 516 pacientes com uma das síndromes, randomizados, duplo-cegos e com grupo de controle com placebo. O medicamento, junto a outros remédios, mostrou ser mais eficaz que placebo no controle da frequência das crises.

No Brasil, o único remédio à base de Cannabis registrado pela Anvisa é o Mevatyl (tem CBD e THC). É indicado para tratar espasmos moderados e graves relacionados à esclerose múltipla, mas é contraindicado para gestantes, idosos, portadores de epilepsia ou usuários de maconha. A eficácia foi testada em estudos com mais de 1.500 pacientes. Será comercializado com tarja preta e condicionado à prescrição médica.

Revisões sistemáticas, que agrupam estudos e os analisam com critérios metodológicos rigorosos, têm apontado limitações e efeitos colaterais importantes para várias patologias em que hoje os compostos de Cannabis são indicados.

Uma revisão da Cochrane de 2018 do uso da Cannabis para analgesia, que avaliou 16 estudos com 1.750 pacientes, concluiu que houve “baixa evidência de melhora modesta” das queixas de dor comparado com placebo (21% contra 17%).

Análise publicada neste mês de setembro por pesquisadores da Mayo Clinic diz que, embora estudos pré-clínicos sugiram que o CBD e o óleo de cânhamo tenham efeitos anti-inflamatórios e possam ser úteis para melhorar o sono e a ansiedade, os testes em humanos ainda são bem limitados.

“É cedo demais para emitir uma opinião definitiva quanto à eficácia e à segurança”, diz Brent Bauer, pesquisador da Mayo Clinic.

Em fórum sobre maconha realizado pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), a neurologista da USP Laura Guilhoto concluiu sua fala com opinião semelhante: “São necessários mais ensaios clínicos”.

Segundo Guillhoto, revisões demonstraram que o uso do CBD melhorou a espasticidade em pacientes com esclerose múltipla, mas que é ineficaz no tratamento do Parkinson. Para a neurologista, novos fármacos à base de canabinoides são bem-vindos e novas pesquisas, com maior número de pacientes e por longo prazo, devem ser feitas.

Virgínia Carvalho, professora do curso de farmácia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), também defende o potencial terapêutico do produto no tratamento de doenças degenerativas. “É importante que as pesquisas continuem.” Um dos principais problemas hoje é a posologia para cada paciente.

Por isso, o psiquiatra e conselheiro federal Leonardo Sérvio Luz defende a resolução do CFM que só aceita o uso dos canabinoides em ensaios clínicos controlados ou na falta de alternativas terapêuticas para crianças e jovens adultos com crises epilépticas refratárias aos tratamentos usuais.

Luz disse que entende os pais que lutam pelos remédios à base de Cannabis, mas que há uma diferença entre o desejo e as evidências científicas.

“Nós, como entidade responsável por dizer o que o médico pode ou não fazer, não podemos agir de acordo com o desejo. Temos de nos ater às pesquisas. E, por enquanto, a conclusão é que faltam estudos com um maior número de participantes e de longo prazo.”

Outro ponto levantado por Bauer é a existência de poucos estudos rigorosos de segurança para os canabinoides de “espectro completo”, ou seja, que têm outros compostos da planta além do CDB.

Ele alerta que há um crescente número de relatos de lesão hepática em pacientes que usaram produtos à base de canabinoides.

Uma pesquisa canadense, que menciona 11 revisões sobre o tema, mostra que há eventos adversos relacionados ao uso dos canabinoides medicinais quando comparados com placebo. Entre eles, distúrbios visuais, hipotensão, alucinação e paranoia.

“A interrupção devido a efeitos adversos ocorre em um em cada grupo de 8 a 20 pacientes. Independentemente do tipo de canabinoide usado, os eventos adversos são comuns e provavelmente subestimados”, escreveram os autores.

Grande parte dos produtos de uso terapêutico consumidos hoje nos EUA são vendidos como suplementos alimentares, o que dispensa as exigências que as agências reguladoras, como a FDA, fazem para registros de remédios.

“Com exceção do Epidiolex, uma forma purificada do CBD derivado de planta, nenhuma outra forma do CBD tem aprovação da FDA, mas elas são vendidas em diversas formulações”, diz Karen Mauck, especialista em medicina interna da Mayo Clinic.

Segundo ela, esses produtos contêm quantidades variáveis de CBD, podem incluir outros compostos ativos da maconha e apresentar imprecisões no rótulo.

“Antes de utilizar o CBD ou os óleos de cânhamo, é importante consultar um médico sobre os possíveis efeitos colaterais e interações com outros medicamentos. Cabe-nos questionar, há comprovação científica para eficácia e segurança da maconha nas inúmeras indicações propostas?”

Para o médico Luis Correa, especialista em medicina baseada em evidência e professor na Escola Bahiana de Medicina, não há, mas independentemente disso, a preferência da família ou do paciente deve ser considerada.

“Bem-estar vem da satisfação, e pode haver satisfação pelo livre arbítrio de optar pelo uso de algo, pela percepção de melhora decorrente do placebo ou de fatores associados ao tratamento, ou até mesmo por um efeito real que não sabemos existir.”

No entanto, segundo ele, essa opção pessoal não deve ser considerada um remédio prescrito, pois isso leva à necessidade de suporte científico. “O ideal seria a disponibilidade de alguma forma de baixo risco, como acontece com suplementos nutricionais. Não precisamos chamar de remédio o que não podemos chamar de remédio.”

Para Correa, os eventos adversos não tornam o uso medicinal, nem mesmo recreativo, da Cannabis uma contraindicação.

Em carta aberta, três pesquisadores em Cannabis medicinal dizem que “não há qualquer justificativa médico ou científica sólida o suficiente para justificar que os pacientes brasileiros sejam privados dessa alternativa terapêutica”.

“Há riscos? Sim, sem dúvida. Mas eles não são superiores em nada aos riscos das abordagens farmacológicas tradicionais no campo da neurologia ou psiquiatria, e mais ainda, da oncologia.”

A carta foi uma reação de Fabricio Pamplona, doutor em farmacologia dos canabinoides, Paula Dall´Stella, médica, e Ricardo Ferreira, médico especialista em coluna vertebral e clínica da dor, a uma nota técnica do Ministério da Saúde que recomendou à Anvisa o registro somente do canabidiol e apenas para uma doença, epilepsia refratária.

Segundo os autores, há diferentes composições de produtos possíveis, mais adequados ou menos adequados a determinados sintomas, e cujos riscos também diferem.

“Vamos desde o canabidiol (CBD), com potencial comprovado em epilepsias refratárias, e evidências de eficácia em melhora do sono e ansiedade, até o mais controverso delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), como tratamento paliativo no alívios dos efeitos de quimioterapia, passando por composições contendo ambos em igual proporção, para alívio de dores e espasticidade associados à rigidez muscular em certas doenças neurodegenerativas.”

ENTENDA COMO FUNCIONA A CANNABIS MEDICINAL

- A Cannabis produz mais de 80 tipos de canabinoides. Os que têm propriedades medicinas mais conhecidas são o CBD (canabidiol) e o THC (tetrahidrocanabinol)

- Essas substâncias estão mais concentradas nas flores das plantas fêmeas da espécie

DIFERENÇAS ENTRE CÂNHAMO E MACONHA

- Cânhamo (em inglês hemp): É uma planta alta e esguia, com poucas ramificações laterais. Tem alto teor de CBD, sem efeito psicoativo, e no máximo 0,3% THC, a substância que causa efeitos psicoativo. O caule e suas fibras são usadas na produção de papel, tecidos, cordas, entre outros. Nos EUA e no Canadá, o óleo de cânhamo é considerado um suplemento alimentar

- Maconha: Tem baixa estatura, mais encorpada e com muitas flores —a parte da planta que apresenta níveis bastante elevados de THC. O caule e as fibras não são utilizados. Para maximizar os níveis de THC, ela é comumente cultivada em um ambiente fechado para que as condições como luz, temperatura e umidade possam ser controladas de perto

POTENCIAL TERAPÊUTICO DOS CANABINOIDES*

- CBD
Crises epiléticas/convulsões
Autismo
Inflamações
Efeitos neuroprotetores

- THC
Dor crônica
Espasticidade muscular
Náusea induzida por quimioterapia
Inflamações

* O CFM (Conselho Federal de Medicina) recomenda a prescrição apenas em casos de epilepsia grave, refratária a tratamentos convencionais. Fontes: Campanha Repense, associações de pacientes, estudos publicados.

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