A indústria oferece pagamentos ou favores a 86% dos médicos responsáveis por definir padrões no tratamento de câncer nos Estados Unidos – e esses padrões se difundem pelo mundo
Foram analisadas as ligações da indústria com 125 autores da NCCN, responsáveis por determinar as diretrizes nos tratamentos de câncer de mama, próstata, pulmão e cólon, os mais comuns nos Estados Unidos. Dos 86% de especialistas que apresentaram ao menos uma situação de conflito de interesse, 84% receberam um ou mais pagamentos da indústria e apenas 47% receberam investimentos só em pesquisa (um tipo de investimento mais compreensível, mas que também gera preocupações). A maioria dos médicos que receberam benefícios não está relacionada com pesquisas e somente três autores (2%) receberam investimentos exclusivamente para desenvolver estudos acadêmicos.
Aaron Mitchell, coautor do estudo e membro do Departamento de Oncologia da Universidade da Carolina do Norte, enumera os problemas: "Muitas farmacêuticas investem grandes quantidades de dinheiro no desenvolvimento de novas drogas. Boa parte desse dinheiro vai para os médicos e hospitais realizarem testes clínicos. Além disso, palestras, cursos de especialização, materiais de apoio educacional também são bancados por essas empresas. Tudo isso é considerado conflito de interesse". Segundo ele, as drogas mencionadas pelos médicos nas diretrizes da NCCN são pagas pelo governo dos Estados Unidos toda vez que prescritas para os usuários do Medicare, programa de seguro saúde para idosos no país. “As diretrizes feitas na NCCN realmente podem afetar o mercado farmacêutico”, afirma o pesquisador.
Em 2014, o valor total pago pela indústria aos autores da NCCN foi deUS$ 30,2 milhões. Para os médicos, os benefícios assumem várias formas. O estudo separou esses benefícios em dois grupos: pagamentos gerais (como presentes e contratação de palestras) e investimentos em pesquisa.
“Hoje, é praticamente impossível que os líderes na área de oncologia e na área acadêmica não tenham algum tipo de relacionamento com a indústria farmacêutica. Isso acontece porque mais de 70% ou 80% da pesquisa para desenvolvimento de novos tratamentos é feita pela indústria farmacêutica”, afirma Carlos Barros, oncologista e diretor do Hospital do Câncer Mãe de Deus, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. “Que existe um relacionamento com a indústria, é fato. Mas, que isso represente um elemento que defina essa relação como perversa, é outra discussão”, diz.
Embora comum, a relação entre a indústria farmacêutica e médicos é constantemente criticada. John Ioannidis, diretor do Centro de Pesquisa em Prevenção da Universidade Stanford, é um dos mais ativos pensadores do assunto. Ele vem mostrando que a aprovação de novas drogas e a adoção de novas práticas têm nascido de um jeito viciado de fazer ciência, que inclui enganos, mas também manipulações mal-intencionadas e sofisticadas. “Quando a indústria farmacêutica está envolvida em pesquisa, não é pela curiosidade da descoberta científica ou para salvar as pessoas. Ela quer ganhar dinheiro”, afirma.
A conta final dos tratamentos recai sobre os pacientes e suas famílias e, cada vez mais frequentemente, sobre o conjunto dos contribuintes, já que os governos são os maiores compradores. No custo de um medicamento estão embutidos os gastos de todo o processo, inclusive de quaisquer esforços para tentar influenciar os profissionais de saúde.
Desde 2014 está em vigor nos Estados Unidos o programa Open Payments, em português, Pagamentos Abertos. Ele se destina a coibir os conflitos de interesse que possam influenciar a pesquisa de novos medicamentos, a formação dos futuros médicos e a prática clínica dos profissionais. Desde que a reforma do sistema de saúde foi implementada pelo presidente Barack Obama, em 2014, as empresas farmacêuticas são obrigadas a informar pública e nominalmente quais médicos receberam verbas de marketing da empresa e quanto eles receberam. Isso inclui desde honorários para falar sobre um produto até almoços de relacionamento. No Brasil, não existe nada parecido. Para o vice-presidente de pesquisa da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, Carlos Gil Ferreira, ainda é necessário discutir a questão no Brasil e torná-la institucional. “A gente precisa amadurecer um pouco mais em termos de transparência, mas existe um total interesse tanto da indústria quanto dos médicos e pesquisadores em evoluir nesse sentido”, diz.
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