Ao lado da mãe, Laura recupera-se bem da operação complexa que envolveu 30 profissionais e durou 10 horas - Félix Zucco/Agencia RBS
Conseguir um doador infantil é raro. Geralmente, é utilizado um órgão adulto nesse tipo de procedimento. Cirurgia ocorreu no Hospital da Criança Santo Antônio, na Capital
O costume adquirido em setembro do ano passado, quando foi aconselhada pela equipe médica do Hospital da Criança Santo Antônio, de Porto Alegre, a deixar sempre o celular por perto ou em mãos, permanece vivo. A gerente de loja Jaqueline Gomes, 34 anos, moradora de São Leopoldo, segura o smartphone com força, como se sua vida dependesse dele. Assim o faz porque foi por meio de uma ligação telefônica recebida no dia 22 de março que ela soube que sua filha Laura de Souza, 11 meses, havia conseguido um doador de fígado.
Foram seis meses na lista de espera por um transplante até ele ser realizado, em 23 de março, nas dependências do Complexo Hospitalar Santa Casa, na primeira vez que o hospital e o Rio Grande do Sul registram a realização de um transplante com uma doadora tão pequena — de apenas 19 dias.
Laura sofria de atresia biliar — má formação do fígado que faz a pessoa nascer sem as vias biliares e impossibilitada de excretar a bile, o que desencadeia o quadro de cirrose. Porém, as dimensões do órgão da menina surpreenderam até mesmo nos médicos: pesava somente 130 gramas e cabia na palma da mão dos cirurgiões — a título de comparação, um fígado adulto pesa, aproximadamente, 1,5 quilo.
Conseguir um doador infantil é raro. Geralmente, é utilizado um órgão adulto nesse tipo de procedimento, mas o problema é que o fígado precisa passar uma readaptação de tamanho, ser reduzido para caber dentro do corpo de uma criança. Como a técnica requer tempo, o pleno funcionamento do fígado pode ser afetado após a operação, já que, uma vez retirado, o ideal é fazer a cirurgia em um intervalo entre seis e oito horas, conforme o coordenador do Programa de Transplante Hepático Infantil da Santa Casa, Antônio Kalil:
— Doador criança é algo muito difícil de se encontrar. No caso da Laura, ele era muito mais jovem, e, aí, está o ineditismo e também a dificuldade desse procedimento. Muitas instituições não usam órgãos de recém-nascidos, porque o risco de complicação é muito alto. As veias e a artéria são muito finas, e a costura delas com as do receptor só pode ser feita por microscópio. Essa era uma operação de alto risco, porque se as costuras fossem mal executadas haveria um grande risco de a paciente desenvolver trombose e de o fígado não funcionar. Por isso, dá uma satisfação muito grande ver a Laura bem.
A realização do transplante mobilizou uma força-tarefa. Foi necessário um avião para buscar o órgão no interior do Estado, mais de 30 profissionais, sendo seis deles cirurgiões, e 10 horas de dedicação na sala de operação. Laura passou pela Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e foi encaminhada para o quarto. A pequena, que acaricia o rosto da mãe enquanto olha atenta a movimentação, está quase pronta para desbravar a vida.
— As primeiras 48 horas após a cirurgia foram muito tensas, mas ela não teve nada. O peso e a preocupação que eu carregava nas costas despareceram. A minha filha está bem, então, eu estou bem também. Tudo se encaixou. Estamos prontas para viver a vida juntas — diz
Quadro crítico e corrida contra o tempo
Laura foi diagnosticada com a doença aos dois meses de vida. Ela poderia ter feito a chamada cirurgia de Kasai, que tenta drenar os canais internos do fígado para o intestino, mas esse procedimento precisa ser realizado no início da vida do bebê — a identificação da doença acontece logo após o nascimento — e, mesmo nesse cenário, a medida é paliativa. Em em mais de 80% dos casos, os pacientes acabam entrando na fila de transplante, de acordo com Antônio Kalil, da Santa Casa:
— O quadro de Laura era crítico, o fígado dela ficou cirrótico. Não tinha outra alternativa, remédio ou diálise, que a ajudasse. A única forma de mantê-la viva era o transplante de fígado.
A rotina de cuidados com Laura exigia, a cada dia, mais zelo de Jaqueline — que ainda está afastada do trabalho para dar atenção à filha — e dos familiares que a auxiliavam. O tempo corria e, sem muitas alternativas à vista, a situação tornava-se mais delicada. Até mesmo o desenvolvimento da menina havia sido interrompido. Há três meses, ela não crescia, nem ganhava peso, relata a mãe:
— Ela tomava oito medicamentos por dia, usava sonda para se alimentar e enfrentava sérias dificuldades para ganhar peso. A doença avançava com o passar do tempo.
Jaqueline passeava com a menina quando o telefone tocou. A primeira pergunta que ela ouviu do outro lado da linha foi: "É a mãe da Laura?".
— Comecei a respirar fundo, então, eles falaram que tinha um possível doador para a minha filha, e eu comecei a chorar muito. Sou muito grata à família que optou por doar, porque eles conseguiram pensar no outro, nas vidas que eles estariam salvando mesmo em um momento tão difícil. Eu não tenho palavras para agradecer — diz Jaqueline, emocionada.
Comentários