Novo estudo mostra as muitas faces do câncer

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O Globo | CESAR BAIMA

Atlas revela como genoma afeta evolução da doença em mais um avanço na medicina de precisão

Num esforço que especialistas apontam como um dos maiores avanços nos últimos anos na chamada medicina de precisão contra o câncer — em que o tratamento é guiado pelas características específicas da doença, como seu perfil genético num determinado paciente — cientistas suecos divulgaram ontem a criação de um novo Atlas de Patologia Humana que mostra como milhares de mutações associadas a 17 dos principais tipos de tumores afetam a produção de proteínas e o metabolismo das células cancerosas, influenciando assim na perspectiva de sobrevida do doente. Com isso, eles esperam não só melhorar ainda mais as terapias individualizadas, como abrir caminho para o desenvolvimento de novas ferramentas de diagnóstico precoce e medicamentos que sejam mais eficientes no ataque aos tumores e, ao mesmo tempo, tenham menos efeitos colaterais.

Já há alguns anos médicos e cientistas sabem que o câncer não é uma doença só, mas manifestações de diferentes alterações no DNA das células que levam a um resultado comum: provocar sua multiplicação desordenada. A criação do novo atlas da patologia genética do câncer começa com o próprio sequenciamento do genoma humano, concluído pela primeira vez em 2003. A partir dele, pesquisadores identificaram milhares de mutações associadas ao surgimento dos tumores, que foram reunidas no também primeiro Atlas do Genoma do Câncer, publicado inicialmente em 2013.

PODER DO ‘BIG DATA’

Mas o DNA é apenas o início da história. Localizado no núcleo celular, ele precisa ser “transcrito” por outro tipo de molécula genética, o RNA, que então transmite seu código para organelas dentro das células, os ribossomos, que vão seguir suas instruções para finalmente produzir as proteínas que precisamos para viver. Assim, embora alterações no DNA possam levar à produção de proteínas defeituosas, há um longo caminho entre estas mutações e seus efeitos no funcionamento das células. E é bem no meio dele, o chamado “transcriptoma”, que está o novo atlas.

— Este estudo difere de investigações anteriores sobre o câncer por não observar só as mutações, mas os efeitos finais destas alterações em todos genes que codificam proteínas — destaca Mathias Uhlen, diretor do consórcio Atlas das Proteínas Humanas, que busca revelar como o genoma é traduzido em todas as proteínas que precisamos, o chamado “proteoma”, e líder do esforço do Atlas de Patologia, do qual é derivado e cuja compilação foi relatada ontem em artigo publicado na revista “Science”. — Mostramos, pela primeira vez, a influência dos níveis de expressão (atividade) dos genes (na evolução do câncer), demonstrando o poder do “big data” (grandes quantidades de dados) no modo como a pesquisa médica é feita. E mostramos também a importância das políticas de acesso aberto na ciência, em que os pesquisadores compartilham dados uns com os outros para permitir a integração de enormes quantidades de dados de diferentes fontes.

E de fato não foram pouco os dados usados na criação do novo atlas. Para isso, os cientistas usaram um centro nacional de supercomputação na Suécia para analisar mais de 2,5 petabytes de informação — o equivalente a mais de 33 anos seguidos de vídeos em alta resolução — baseados em dados sobre 17 tipos de tumores em mais de oito mil pacientes do Atlas do Genoma do Câncer e cruzá-los com dados clínicos dos próprios pacientes para gerar mais de 100 milhões estatísticas de prognósticos da doença. Com isso, eles obtiveram mais de 900 mil diagramas estatisticamente significativos que mostram como o RNA e os níveis de proteínas por ele codificados afetam a expectativa de sobrevida dos pacientes, revelando assim quais mutações têm melhor e pior prognóstico para cada tipo de câncer.

— Este é um dos estudos mais importantes dos últimos anos na área e, arriscaria dizer, uma das maiores ferramentas já geradas para dar base a estratégias de medicina de precisão contra o câncer — considera Carlos Gil, médico do Grupo Oncologia D’Or e diretor da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC). — O Atlas do Genoma do Câncer gerou muitas informações sobre o sequenciamento genético dos tumores, mas ainda faltava uma análise clínica de tudo isso, como sua influência nos prognósticos da doença.

Já para André Murad, coordenador de Oncologia da Faculdade de Medicina da UFMG e diretor da clínica Personal, especializada no uso do diagnóstico genético para tratamento do câncer, o novo atlas “é um marco na luta” contra a doença ao abrir a trilha para desvendar os efeitos das mutações genéticas no metabolismo das células cancerosas, o que chamou de “metaboloma”. Isto porque, explica, nem sempre uma mutação genética leva à produção de uma proteína defeituosa cujo ganho ou perda de função desencadeie o câncer, assim como nem todo câncer é fruto de uma alteração no DNA, podendo também ser resultado dos chamados processos epigenéticos, em que fatores ambientais provocam a ativação ou desligamento de um determinado gene na célula.

— O estudo é um grande salto sobre o Atlas do Genoma do Câncer, pois estabeleceu um paradigma para tudo que está além do genoma no perfil metabólico dos tumores e seu prognóstico — avalia. — Ele pode ajudar a explicar, por exemplo, porque apesar da indicação dada pelo diagnóstico genético alguns pacientes não respondem ao tratamento como o esperado.

EXAMES E TRATAMENTOS

Tanto Gil quanto Murad destacam que embora os achados do atlas ainda precisem ser validados em outros dos chamados coortes de pacientes, já que podem ter sido afetados por características específicas da base de dados usada na sua montagem, eles deverão fundamentar centenas de outros estudos que poderão levar ao desenvolvimento de novas ferramentas de prevenção, diagnóstico precoce e combate ao câncer, como o recém-relatado exame de sangue criado por pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, que se mostrou capaz de detectar mesmo pequenas quantidades de DNA específico da doença e foi usado para identificar de forma acurada mais de metade dos casos de 138 pessoas que estavam com câncer colorretal, de mama, pulmão ou ovário ainda em seus estágios iniciais.

— É difícil saber qual será o tamanho das implicações que ele terá no futuro tanto do tratamento quanto no diagnóstico do câncer, mas certamente será muito grande — diz Gil. — A partir deste atlas, teremos novos biomarcadores para serem usados tanto na medicina de precisão quanto no diagnóstico.

Murad, por sua vez, lembra ainda que com o aprofundamento dos conhecimentos sobre a relação entre o genoma e o metabolismo do câncer será possível reduzir os custos dos diagnósticos genéticos da doença ao focá-los em um grupo menor de genes, ajudando a democratizar o acesso à medicina de precisão, além de permitir a produção de drogas mais específicas contra cada tipo de manifestação da doença, reduzindo os efeitos colaterais.

— Outra linha interessante aberta por este estudo é que também poderemos atuar metabolicamente contra o câncer, atacando os fatores que levam ao seu desenvolvimento no lugar de tentar matar as células cancerosas em si — conclui.

Técnica pode consertar falha genética que leva à infertilidade

Método eliminaria cromossomo extra que atrapalha reprodução

“Nossa abordagem nos permitiu criar descendentes de camundongos estéreis” Takayuki Hirota Pesquisador

Um estudo desenvolvido por pesquisadores do Instituto Francis Crick, na Inglaterra, deu um passo importante rumo ao tratamento de infertilidade: os cientistas desenvolveram uma técnica capaz de eliminar o cromossomo extra presente nas células de alguns homens e que inviabilizam a reprodução.

Embora tenha sido realizado com camundongos, a expectativa é que o método, caso seja bem sucedido em humanos, possa auxiliar homens com síndrome de Klinefelter (na qual há um cromossomo X extra) e síndrome do Duplo Y a terem filhos por meio de reprodução assistida.

A pesquisa, publicada na revista “Science”, explica que, na maioria dos casos, homens e mulheres têm dois cromossomos que determinam seus sexos. Cromossomos XX no caso delas e XY, no deles. No entanto, um em cada 500 homens nascem com um cromossomo extra, seja X ou Y, que os torna inférteis.

Durante o experimento, os cientistas coletaram amostras do tecido conjuntivo da orelha de camundongos e, a partir daí, retiraram células específicas desse tecido, chamadas fibroblastos. O segundo passo foi transformar os fibroblastos em células-tronco. Nesse momento, os cientistas notaram que algumas células perdiam o cromossomo extra causador da infertilidade. Assim, induziram essas células-tronco sem o cromossomo extra a, a partir de estímulos químicos, se diferenciarem em células que pudessem originar espermas.

As células produzidas a partir desse experimento se tornaram espermas maduros após serem implementadas nos testículos de outro camundongo e foram utilizadas em uma reprodução assistida. O método foi um sucesso e os cientistas conseguiram gerar descendentes de camundongos originalmente inférteis.

— Nossa abordagem nos permitiu criar descendentes de camundongos estéreis XXY e XYY. Seria interessante ver se a mesma abordagem poderia ser usada como tratamento de fertilidade para homens — diz Takayuki Hirota, pesquisador do Instituto Francis Crick.

ANÁLISE EM HUMANOS

Os pesquisadores também fizeram a mesma análise de maneira preliminar utilizando fibroblastos humanos com síndrome de Klinefelter e constaram que elas também deixavam de apresentar o cromossomo extra. Apesar dos bons resultados, a técnica ainda precisa ser aprimorada. Segundo os cientistas, é necessário descobrir mecanismos para desenvolver espermas maduros sem que seja necessária a aplicação das células em um camundongo hospedeiro.

— Atualmente não há como fazer esperma maduro fora do corpo. Nas nossas experiências com os camundongos tivemos de injetar nos testículos as células com potencial para se tornarem sêmen, mas descobrimos que isso causou tumores em alguns animais — conta James Turner, também do Instituto Francis Crick. — Precisamos reduzir o risco de formação de tumor ou descobrir uma maneira de produzir esperma em tubo de ensaio.

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