Folha de S.Paulo
Jornalista: Reinaldo José Lopes
28/05/20 - O entusiasmo de alguns médicos e de parte da população brasileira com o uso de fármacos sem utilidade comprovada contra o novo coronavírus deixou claro que ainda falta muito para que a chamada medicina baseada em evidências se consolide no país.
Essa abordagem, que busca usar os melhores dados científicos disponíveis para embasar as decisões sobre o tratamento de cada paciente, tem ficado de lado quando profissionais e gestores de saúde optam pelo emprego de medicamentos como a hidroxicloroquina ou a ivermectina, cuja eficácia e segurança ainda não foram demonstradas.
“Em vez de medicina baseada em evidências, vemos alguns praticando medicina baseada em impressões”, diz a bióloga Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (associação dedicada à defesa de políticas públicas embasadas em dados científicos). “Parece que a gente está fracassando na tentativa de ensinar método científico nos cursos de medicina, enfermagem e outros da área de saúde.”
Embora tentativas de testar tratamentos cientificamente tenham ocorrido desde os séculos 17 e 18, a proposta de sistematizar esses testes como um guia para a prática médica é bastante recente, remontando aos anos 1980 e 1990, quando o termo “medicina baseada em evidências” foi empregado pela primeira vez por pesquisadores como Gordon Guyatt, da Universidade McMaster (Canadá).
A intenção era aumentar a objetividade das decisões clínicas com base no conhecimento obtido, por exemplo, em múltiplos estudos com grande número de pacientes para recomendar ou não determinada terapia.
Para reforçar a confiabilidade dessas recomendações, tais estudos deveriam aderir a padrões como a existência de grupos-controle (ou seja, a divisão dos pacientes estudados em pelo menos dois grupos, um dos quais recebia o tratamento sendo testado, enquanto o outro recebia um tratamento padrão já usado antes ou uma substância inócua, por exemplo) e a chamada randomização (alocando os pacientes aos diferentes grupos de modo aleatório).
Tais abordagens são necessárias para diminuir os diferentes vieses que surgem naturalmente durante a observação de um tratamento. Muitos problemas de saúde, por exemplo, acabam melhorando graças ao próprio organismo dos pacientes, mas a inexistência de um grupo-controle poderia levar os médicos a assumir erroneamente que o tratamento foi o responsável pela melhora.
No Brasil, ainda são raros os cursos de formação de profissionais de saúde que incluem em seu currículo disciplinas especificamente dedicadas a ensinar esses conceitos.
“No caso das faculdades de medicina, muitas vezes há apenas um módulo sobre o tema na disciplina de epidemiologia, por exemplo”, diz a reumatologista Rachel Riera, do Hospital Sírio-Libanês e da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), onde ministra justamente uma dessas raras disciplinas. “Existem também muitos cursos esporádicos e outros de pós-graduação, que têm crescido.”
Para Riera, a medicina baseada em evidências não é oposta à experiência pessoal de cada médico ao lidar com seus pacientes no cotidiano, mas ajuda a evitar que certos tratamentos continuem a ser usados de forma acrítica apenas por hábito, sem que tragam benefícios reais para o tratamento.
Ela cita o exemplo dos pacientes com queimaduras graves, os quais, em geral, podem morrer por duas causas: infecções nas feridas ou choque hipovolêmico (forte diminuição do volume do sangue). Durante muitos anos, um dos tratamentos prescritos para enfrentar o choque hipovolêmico foi o uso da proteína albumina no soro desses pacientes, para aumentar a pressão sanguínea.
“Era algo que parecia fazer sentido, mas estava baseado em estudos observacionais de pequena escala”, explica a médica. Dados mais amplos, sob condições mais controladas, revelaram que, além de ser mais caro, o procedimento com albumina levava a mais mortes do que o simples uso de soro fisiológico.
“É claro que existe uma grande lacuna, muitas vezes, entre o que seria a melhor solução possível e o contexto de cada profissional de saúde e cada paciente. Tratar um infarto agudo do miocárdio nunca vai ser a mesma coisa num hospital de uma grande cidade e numa comunidade ribeirinha da Amazônia”, pondera ela. “Não adianta só focar nos resultados de grandes estudos se você não leva isso em conta.”
Riera diz ainda que nenhuma situação recente pode ser comparada à pandemia de Covid-19, quando se considera a necessidade de aprender com grande rapidez maneiras de enfrentar uma nova doença.
Para os especialistas, entretanto, o ineditismo do desafio não significa que qualquer recomendação de tratamento é igualmente válida.
“Existe uma diferença brutal entre a posição individual de cientistas e médicos, que é legítima, e o que é consenso sobre uma determinada questão”, explica o bioquímico Hernan Chaimovich Guralnik, do Instituto de Química da USP.
Ele compara o debate sobre tratamentos não comprovados contra a Covid-19 à questão da mudança climática. “A opinião individual de um pesquisador pode até ser respeitável na sua área do conhecimento, mas o IPCC [painel da ONU sobre o clima] tenta se guiar por um consenso mundial ao analisar o tema. É claro que os consensos também podem mudar, mas isso só acontece quando uma grande quantidade de novas evidências contraria um consenso vigente.”
Natalia Pasternak lembra que a chancela do SUS (Sistema Único de Saúde) ao emprego de dezenas de práticas alternativas de saúde sem comprovação científica, como a homeopatia, é outro indício de como o debate sobre medicina baseada em evidências ainda engatinha no Brasil. “Essa falta de racionalidade já estava chancelada, no fundo, mas ela nunca tinha tido afetado tão profundamente um contexto de emergência quanto agora.”
“Os seres humanos são irracionais por natureza, o que significa que entender comportamentos irracionais não é difícil”, disse Gordon Guyatt à Folha. “Mas, se era para escolher uma droga não testada para usar, as evidências sugeririam que várias outras são uma aposta melhor que a hidroxicloroquina.”
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