Combinação de drogas para a prevenção do vírus HIV e o tratamento da doença reduz sensivelmente o número de casos
01/11/19 - Nos anos 80, a aids ainda era uma doença desconhecida e que começava a causar mortes, espalhando medo e preconceito. Antes de ficar claro que o mal não se restringia a grupos específicos, usavam-se expressões como “peste gay” e “câncer gay” para falar do problema grave que minava, de forma misteriosa e impiedosa, as defesas naturais do organismo contra infecções. Toda uma geração foi criada em meio ao fantasma da contaminação e da morte. “Entre o diagnóstico e a fase terminal, transcorriam às vezes poucos meses”, diz o infectologista David Uip, reitor do Centro Universitário Saúde ABC. Ao longo da história, raros problemas de saúde foram tão desafiadores para a ciência. Até que a medicina começasse a colecionar as primeiras vitórias, a epidemia cobrou um preço alto. Mais de 30 milhões de pessoas morreram.
Quase quatro décadas após os primeiros registros, a aids ainda representa um grande problema, mas em proporção bem menor. Alguns países, como os Estados Unidos, até mesmo estabeleceram como meta erradicá-la até 2030. Existem hoje 37,9 milhões de pessoas vivendo com HIV no planeta. Pela primeira vez, mais da metade delas está em tratamento, o que reduz o risco de transmissão. Outra boa notícia: o número de mortes por complicações resultantes da aids caiu mais de 44% no mundo todo em comparação com 2004. No Brasil, o número anual de casos vem diminuindo desde 2013, quando atingiu o total de 43 269. Em 2017, baixou para 37 791.
As projeções tenebrosas dos anos 80 deram lugar a um momento em que os especialistas, com a devida cautela, falam pela primeira vez em vitória no controle da epidemia. O diagnóstico é baseado na combinação de dois fatores. O primeiro deles envolve a evolução dos medicamentos retrovirais, que se destinam a combater o nível do vírus HIV no organismo, de forma que ele não ganhe força para desenvolver a aids. As drogas dos anos 80 eram menos eficientes nessa batalha e provocavam efeitos colaterais enormes, como náuseas e vômitos. “Além de muito mais eficaz, a nova geração de drogas amenizou boa parte desses problemas”, afirma o oncologista Drauzio Varella. Como resultado disso, de moléstia fatal a aids passou à condição de doença crônica tratável. Se no passado as pessoas recebiam uma sentença de morte junto com o diagnóstico, agora elas aprendem a controlar o HIV no organismo com os medicamentos modernos. “Hoje, não existe grande diferença entre a expectativa de vida de pessoas que vivem com HIV e acessam o tratamento e o restante da população”, diz o infectologista Rico Vasconcelos, professor da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo. Há registros de pessoas que vivem há décadas com o vírus, sendo o exemplo mais famoso o de Magic Johnson, o grande ídolo da NBA, a liga profissional de basquete americana, que em 1991 revelou ao mundo sua doença. Ele completou 60 anos em agosto e mantém uma vida normal, revezando a rotina entre seus negócios e as atividades de porta-voz de campanhas de sexo seguro. “Sou casada e tenho dois filhos que não têm o HIV”, conta a publicitária Thais Renovatto, de 36 anos, autora do livro 5 Anos Comigo, no qual narra o que se passou na sua vida após ter sido diagnosticada com o vírus, em 2014. Ela foi infectada quando parou de usar preservativos com seu então namorado. “Minha vida é praticamente normal, mas ainda existe essa ideia de que um corpo com HIV é fadado a definhar e não pode fazer mais nada: não pode amar e não pode ter uma família.”
Não apenas surgiram armas melhores nos últimos tempos para combater o avanço do vírus no organismo. Pela primeira vez na história, está disponível uma estratégia altamente eficaz na prevenção da doença. Batizada de PrEP, ela consiste em uma terapia cujo objetivo é prevenir a infecção por HIV por meio da ingestão diária de um medicamento que é uma combinação dos antirretrovirais tenofovir e entricitabina. O Truvada, nome comercial do remédio, bloqueia a entrada do vírus HIV no DNA das células de defesa do organismo, impedindo a sua replicação. Se utilizado de forma regular, sem interrupções, ele reduz em 90% o risco de infecção. Na rede pública brasileira, a PrEP é oferecida gratuitamente a cerca de 10 000 usuários. Na rede privada, o preço é o obstáculo. Um mês de tratamento custa entre 260 e 300 reais. “O remédio mudou minha vida”, conta o designer Ademir Dema, de 40 anos. “Eu sei que preciso usar camisinha, mas tenho mais autonomia para decidir em quais relações eu não quero usá-la.”
Na medicina, e mesmo na vida, um bom remédio pode causar efeitos colaterais. Especialistas temem, com razão, que a disseminação dessas práticas — fruto de importantes vitórias da ciência — estimule os jovens a abandonar de vez a proteção dos preservativos. “Apesar de ainda haver a discussão de um possível aumento das outras infecções sexualmente transmissíveis pelo não uso do preservativo, a PrEP é muito bem-vinda, pois essas infecções têm tratamento mais fácil e cura”, explica o infectologista Ralcyon Teixeira, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. Exemplo disso é o aumento de casos de sífilis. No Brasil, a incidência da doença por grupos de 100 000 habitantes praticamente dobrou nos últimos quatro anos.
A despeito desse revés, a combinação entre a nova geração de retrovirais e a PrEP vem apresentando resultados promissores. Na Austrália, onde o método já está bem estabelecido, o progresso na prevenção da infecção é visível. Em 2018, foram diagnosticados apenas 835 casos de HIV, a menor taxa da história do país. Outros lugares, como Nova York e São Francisco, que já foram epicentros da epidemia de aids, viram o número de novos contágios cair drasticamente após a adoção da PrEP em larga escala. Recentemente, o Estado de Nova York declarou que vai acabar com o surto da doença até 2020.
Na luta pelo fim da epidemia, o Brasil encontra-se em uma posição intermediária. O país conseguiu reduzir as mortes por aids nos últimos anos, em razão da oferta de tratamento gratuito a todas as pessoas que vivem com HIV, independentemente da carga viral. Por outro lado, houve aumento no número de novas infecções, principalmente em homens jovens, homossexuais e homens que fazem sexo com homens (HSH). Em parte, esse crescimento pode ser atribuído à melhoria na notificação de diagnóstico de HIV positivo, que se tornou obrigatória somente em 2014. Mas também há falta de campanhas de prevenção direcionadas ao público mais afetado pelo problema, ausência de educação sexual (em casa e na escola) e o velho preconceito que associa infecções sexualmente transmissíveis a promiscuidade.
Enquanto o Brasil enfrenta esses desafios, a medicina continua evoluindo. Recentemente, a FDA, agência americana que regula medicamentos, aprovou o Descovy, o segundo remédio para prevenir o HIV, com ação similar à do Truvada. No campo de desenvolvimento de uma vacina, um imunizante da Janssen mostrou proteção contra diversos subtipos do vírus e acaba de entrar em fase final de testes. As conquistas importantes na batalha contra a epidemia não representam um sinal verde para que as pessoas se descuidem da prevenção. A vitória definitiva contra a doença que apavorou o mundo nos anos 80 e matou muita gente ao longo das décadas seguintes depende muito ainda do comportamento responsável da população.
Recebi o diagnóstico de HIV aos 31 anos. Fui infectada quando parei de usar preservativo com o meu então namorado. Eu confiava nele e nem me passou pela minha cabeça pedir exames. Receber a notícia foi muito chocante. Achava que essa possibilidade estava distante da minha realidade. Graças ao tratamento, estou bem de saúde, sou casada e tenho dois filhos que não têm HIV. Minha vida é praticamente normal, mas ainda existe essa ideia de que um corpo com HIV é fadado a definhar e não pode fazer mais nada, não pode amar, não pode ter uma família.
É difícil para uma pessoa com 22 anos descobrir que tem HIV. Você está começando a vida, cheio de planos, e sente como se não tivesse mais futuro. Eu não tive educação sexual em casa nem na escola e não sabia nada sobre a doença. Imaginava o HIV como uma realidade distante. Hoje sei que pode acontecer com qualquer um. Recebi a minha primeira informação sobre HIV pelo YouTube e decidi criar o canal Nossa Hannis para ajudar pessoas que estão na mesma situação em que eu já estive.
Gabriel Luis, 26 anos, usa PrEP e camisinha
Há alguns anos eu tive sífilis e descobri a doença em uma fase mais avançada. Foi péssimo. Se estivesse usando PrEP, certamente teria sido diagnosticado no início, porque fazemos exames e vamos a consultas periódicas. Confesso que eu achei que não fosse mais usar camisinha depois da PrEP, mas foi o contrário. Hoje eu sou mais atento e cuidadoso. Apesar dos possíveis efeitos colaterais, é uma proteção a mais.
Alessandra Coelho, 22 anos, dispensa o preservativo desde o início do namoro
Eu e o Caio estamos juntos há seis anos e não usamos camisinha desde a primeira relação. Além de ser a primeira relação dos dois, eu usava pílula e ele era doador de sangue, o que nos deu segurança. Não havia motivo para preocupação. No período em que eu parei de tomar a pílula, nós usamos preservativo. Mas eu não gostei. Foi uma experiência que prefiro não repetir. Em casa, o diálogo é aberto e minha mãe tem conhecimento da minha decisão. Ela respeita porque sabe que eu me preocupo com a minha saúde.
Ademir Dema, 40 anos, usa PrEP e descarta a camisinha em algumas relações
Confesso que não gosto de usar camisinha. Sei que preciso usar para não contrair doenças como sífilis e gonorreia, mas com a PrEP tenho mais autonomia para escolher com quem eu quero assumir a responsabilidade de transar sem camisinha. Ouço muitas pessoas falando que quem faz uso da PrEP descarta a camisinha e está espalhando doenças. Mas quem não usa é quem já não usava antes, e pelo menos hoje essas pessoas estão mais seguras, prevenindo-se do HIV e fazendo exames trimestrais.
Com reportagem de Letícia Passos
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659
Comentários