Pílulas com altas doses do nutriente são prescritas como prevenção para vários males. Mas as pesquisas científicas não comprovam tais efeitos
MARCELA BUSCATO
A sigla é intimidante: 25(OH)D. Mas não costuma passar despercebida por quem sai do consultório médico com pedidos de exames para um checkup. Ela salta aos olhos invariavelmente em uma de duas situações: ou quando o atendente do laboratório informa que o exame não é coberto pelo plano de saúde e recita o preço, cerca de R$ 500, ou – para os felizardos que contam com a cobertura do convênio – quando os resultados dos exames chegam e a tal sigla é diagnosticada como insuficiente ou deficiente.
À primeira situação, normalmente segue-se a pergunta: “Eu preciso mesmo fazer esse exame?”. Na segunda, o tom é menos indignado e mais preocupado: “É grave? Preciso corrigir essa insuficiência?”. Para todas as questões, a resposta é não. Essa é a solução simples, mas polêmica, que um grupo de pesquisadores tem ousado dar ao que eles afirmam ser uma pandemia – inexistente – de carência de vitamina D. O 25(OH)D é um pré-hormônio produzido a partir da vitamina D. Por isso, é um bom parâmetro para avaliar a quantidade do nutriente no organismo.
“A criação de uma pandemia tem grandes implicações econômicas”, afirma o endocrinologista Ian Reid, professor da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, e uma das vozes mais eloquentes nas críticas ao excesso de entusiasmo com a vitamina. Ela é fabricada pelo nosso próprio organismo, a partir de transformações químicas desencadeadas no corpo pela luz do sol. Mas hoje, com a possibilidade de ser produzida em laboratório, vem, em boa parte, das farmácias. “A indústria de suplementação e de exames ganha bilhões por ano com a vitamina D”, diz Reid.
Poucas substâncias receberam tanta atenção da ciência e da medicina nos últimos anos quanto a vitamina D. Desde que pesquisadores americanos e britânicos descobriram o micronutriente, entre as décadas de 1910 e 1920, e começaram a suspeitar que sua deficiência tivesse alguma relação com o enfraquecimento dos ossos em animais e crianças, a lista de benefícios atribuídos à vitamina D só cresceu. Estudos, ainda inconclusivos, encontraram indícios de que, além de contribuir para a saúde dos ossos, ela atuaria até na prevenção de doenças cardiovasculares e do câncer. Ela tem todos os componentes necessários para despertar a atenção de médicos, pacientes e da indústria alimentícia e farmacêutica. Some-se à promessa de vida saudável a apresentação em comprimidos, cápsulas e gotas, o que não exige grandes sacrifícios de quem os toma. E ainda aquela que talvez seja sua qualidade mais preciosa: o apelo natural atribuído às “vitaminas”. Como são poucos os alimentos ricos em vitamina D – alguns tipos de cogumelos e peixes (leia o quadro abaixo) – e eles não fazem parte da rotina dos brasileiros, tomar as doses que vêm de laboratório se tornou uma promessa fácil de saúde. “Quem é que tem uma alimentação balanceada nos dias de hoje?”, afirma o nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia. “É por isso que fazemos suplementação.”
A combinação desses fatores foi a receita para quase dobrar as vendas, entre 2012 e 2015, no Brasil. Segundo a consultoria IMS Health, que contabiliza os dados da vitamina D somados à vitamina A, foram vendidos 7,3 milhões de caixas em 2014, o recorde do segmento nos últimos cinco anos. É o equivalente a R$ 220 milhões. O número de exames realizados para dosar o nível no sangue cresceu em ritmo semelhante. O Fleury Medicina e Saúde, rede de serviço de diagnósticos com unidades no estado de São Paulo e em Brasília, registrou um aumento de sete vezes nos pedidos de exames nos últimos cinco anos. “Virou quase um exame de rotina, pedido por vários tipos de especialistas: endocrinologistas, nutrólogos, ginecologistas, cardiologistas, nefrologistas”, diz o endocrinologista José Viana Lima Junior, assessor médico do Fleury. “Há pacientes que estão fazendo o exame e não precisam.”
A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem) publicou em 2014 um documento reunindo as evidências científicas sobre os usos e indicações da vitamina D. As diretrizes não indicam o exame para a população em geral, apenas para pessoas que vivem confinadas, como idosos com dificuldades de locomoção, pessoas com problemas de absorção de nutrientes (caso de quem passou por cirurgias de redução do estômago, por exemplo) ou que tenham problemas ósseos. Na prática, não é o que tem acontecido. “Temos visto uma epidemia de um exame que é caro e cujo custo, ainda que coberto pelo convênio, é dividido por todos os associados”, diz o endocrinologista Sergio Maeda, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e um dos autores das recomendações da Sbem. Muitos médicos passaram a pedir a dosagem talvez pressionados pela avalanche de estudos, mas também cientes de que a melhor fonte de vitamina D, o sol, é remédio escasso na vida das grandes cidades. A exposição da população diminuiu, assim como aumentou o uso de protetores solares. Apesar de essa ser uma boa notícia, por evitar o perigoso câncer de pele, os protetores dificultam a absorção da radiação e, consequentemente, a fabricação natural da vitamina D. A consequência do exame desnecessário não se limita a seu custo. O teste costuma ser apenas o começo dos gastos, já que, não raramente, o resultado sugere que o nível de vitamina D não está adequado. É aí que entra em cena o sol em cápsulas, comprimidos ou gotas – e começa mais uma polêmica. Qual é o nível adequado de vitamina D?
Não há consenso entre as instituições médicas. A Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos, referência internacional na prática médica, diz que é desejável manter a marca de 20 ng/ml (lê-se nanogramas por mililitro) para obter os melhores benefícios para os ossos, como evitar fraturas. As sociedades de endocrinologia, tanto a brasileira quanto a americana, usam um parâmetro maior, de 30 ng/ml, para garantir a saúde óssea. Elas afirmam ter chegado a essa recomendação ao analisar os estudos de maior grau de rigor científico. Para outras indicações, como prevenir o câncer e doenças cardiovasculares, consideram que não há evidências científicas sólidas. No último mês, duas grandes revisões chegaram à conclusão de que não há nenhuma relação entre esses males e a vitamina D.
Para adensar a discussão, um grupo de pesquisadores publicou um artigo em novembro do ano passado, no New England Journal of Medicine, dizendo que ambos os níveis, tanto os sugeridos pelas sociedades de endocrinologia quanto pela academia de medicina, são exagerados.
Cada pessoa tem uma necessidade diferente de vitamina D: por razões genéticas e ambientais que ditam o ritmo do metabolismo, algumas precisam de mais, outras de menos. Por isso, os especialistas costumam usar como recomendação geral de consumo um valor mais alto, que seja capaz de suprir as necessidades até de quem precisa do maior nível do nutriente. Os estudos de referência estimam que metade da população precise de um nível no sangue de até 16 ng/ml de vitamina D – o equivalente à absorção entre 400 e 600 unidades do micronutriente por dia, dependendo da faixa etária. Para garantir que a outra metade da população, que precisa mais do que isso, seja contemplada, os especialistas fixaram como nível mínimo de vitamina D um valor mais alto, acima de 20 ng/ml, equivalente à absorção de 600 a 800 unidades do micronutriente, dependendo da idade. Esse valor garante que as necessidades de até 98% da população sejam contempladas. Simplificando o raciocínio, isso significa que, nos exames de dosagem, a necessidade máxima de vitamina D virou a mínima. Por isso, não é difícil entender por que tanta gente precisa suplementar a vitamina. “Essa abordagem classifica erroneamente como deficiente a maioria das pessoas cujas necessidades nutricionais já foram supridas”, escrevem os autores do estudo, liderado pela epidemiologista americana JoAnn Manson, da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard. “Isso cria uma aparente pandemia de deficiência de vitamina D.”
Não há dúvidas de que existam deficiências graves da vitamina. Valores abaixo de 12,2 ng/ml estão associados ao enfraquecimento dos ossos em crianças, o chamado raquitismo, ou em adultos, a osteomalácia. Mas estão restritos a grupos pequenos e são cada vez mais raros em países em desenvolvimento. Estudos de campo feitos no Brasil sugerem que os níveis médios entre grupos variam em função do estilo de vida e de acordo com o lugar em que as pessoas moram, em razão da incidência solar. Entre pacientes internados em instituições e, portanto, menos expostos ao sol, um levantamento chegou à média de 14,4 ng/ml. Entre jovens moradores de São Paulo, que não tomavam nenhum suplemento, o resultado foi 31,2 ng/ml. Em um grupo de mineiros de Belo Horizonte, em que 27% faziam uso de suplementos, a média foi de 39,6 ng/ml. “É muito difícil saber qual é a dosagem normal da vitamina D para uma pessoa”, afirma o clínico geral Arnaldo Lichtenstein, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Além de existir referenciais diferentes na literatura, os valores mudam de acordo com a época do ano e com a latitude em que a pessoa mora.”
O desafio da ciência agora é comprovar se existe realmente um nível ótimo de vitamina D, capaz não só de prevenir deficiências graves, como o raquitismo, mas também de garantir benefícios extras, como impedir fraturas em pessoas idosas ou com osteoporose. Até mesmo esses benefícios, que já eram considerados consagrados, estão sendo colocados em dúvida por pesquisas recentes. Na última década foram feitos vários estudos comparando grupos que tomavam vitamina D e outros que não faziam suplementação. Esse tipo de metodologia é considerado o mais rigoroso cientificamente. Os resultados surpreenderam. “Quase todos esses grandes estudos recentes não mostraram benefícios da suplementação”, afirma o pesquisador neozelandês Mark Bolland, da Universidade de Auckland, que analisou essas pesquisas. “Estamos cada vez mais certos de que a suplementação de vitamina D não é necessária para a maioria das pessoas.” Bolland foi um dos autores a fazer um levantamento de 14 grandes estudos, cada um com mais de 1.000 participantes. Ele descobriu que apenas três deles apontaram que a suplementação com vitamina D havia reduzido o risco de fratura. Nove estudos não demonstraram nenhum efeito e dois sugeriram que a suplementação aumentava o risco. De 24 testes de menor escala, 21 não mostraram nenhum efeito. Ao usar esse tipo de levantamento como base, um painel americano de especialistas independentes, o The United States Preventive Services Task Force, considerou que não há evidências suficientes para balancear os benefícios e os riscos de vitamina D, combinada ao cálcio, para reduzir o risco de fraturas. Para idosos, o painel recomenda a suplementação.
Pesquisadores que integram o time do contra pressionam para que as sociedades médicas alterem suas diretrizes. “Elas persistem em propagar a ideia de que tomar vitamina D é necessário e traz benefícios”, diz o neozelandês Andrew Grey, que analisou alguns dos estudos junto com o colega Bolland. Ele diz que as razões são financeiras. “Muitas entidades médicas, que influenciam nas diretrizes, são patrocinadas por empresas farmacêuticas e de nutrição”, afirma Grey. “É recomendável que os painéis sejam presididos por pessoas que não tenham conflitos de interesse e que a maioria dos membros também não tenha.” Quando a Sociedade Americana de Endocrinologia publicou recomendações sobre o uso de vitamina, em 2011, o presidente do painel declarou ter relações com empresas farmacêuticas e alimentícias. Dos outros sete integrantes que elaboraram as diretrizes, três declararam conflitos de interesse semelhantes. À época da publicação das recomendações da Sbem, a Sociedade Brasileira de Endocrinologia, em 2014, dos setes autores, apenas dois afirmaram não ter conflitos de interesse. Os outros cinco declararam ser palestrantes de empresas farmacêuticas, inclusive fabricantes de vitamina D. “Nós tomamos muito cuidado com os conflitos de interesse”, afirma o endocrinologia Fábio Trujilho, presidente da Sbem. “Os autores são muito respeitados na área, professores de universidades importantes. Eles têm um nome a zelar, não se deixariam influenciar.”
Do lado de cá da mesa do consultório médico, do lado do paciente, a dúvida que resta a quem fez o exame desnecessariamente e recebeu o polêmico diagnóstico de “insuficiência” é se é realmente necessário ingerir o sol enlatado. Se você não for um bebê ou um idoso (para os quais a necessidade de suplementação é um consenso), a indicação é controversa. Muitos médicos acham melhor garantir doses baixas, de até 2.000 unidades, diariamente por algumas semanas. A vitamina D não oferece riscos adversos quando ingeridas em doses baixas, mas pode provocar consequências graves se tomadas em dosagens altas por um longo período. Ela aumenta os níveis de cálcio no organismo, o que pode provocar problemas no coração e até perda da função renal. Já há relatos de que a intoxicação por vitamina D aumentou nos últimos anos. O mais seguro talvez seja garantir uns minutinhos ao sol logo pela manhã ou no final da tarde. E aumentar a frequência de peixe no cardápio. “A grande maioria das pessoas não precisa de medicamento”, diz Trujilho, da Sbem. “Elas podem se beneficiar de mudanças no estilo de vida.”
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