O Globo | André Miranda
Na Torá — o livro sagrado do judaísmo, equivalente ao Antigo Testamento —, há diversas situações em que profetas viram Deus, mas Deus não estava lá. O texto até cita a frase divina: "não poderás ver a minha face, porque o ser humano não pode me ver e permanecer vivo".
Mas, então, o que viam esses profetas como Moisés, que teria ficado no alto do Monte Sinai por 40 dias e 40 noites ouvindo os ensinamentos de Deus?
— Moisés pode ter tido uma experiência com ayahuasca — diz a jornalista americana Madison Margolin. — Os psicodélicos podem ser a interseção entre Deus e a ciência. E, no caso do judaísmo, podem ajudar a superar traumas e representar uma conexão consigo mesmo e com a religião.
Madison tratou do assunto nesta segunda-feira, no painel "Judaísmo e psicodélicos", no South by Southwest, um festival realizado em Austin, Texas, que é conhecido por debater inovação em diversos campos, até mesmo nos mais improváveis. Ela foi escalada para o evento por seus trabalhos sobre cultura, cannabis e, naturalmente, psicodélicos e judaísmo. Entre seus artigos publicados em jornais e revistas, destacam-se "Judeus, cristãos e muçulmanos estão recuperando antigas práticas psicodélicas, e isso pode ajudar na legalização" (revista Rolling Stone, 2021), "Shabat é uma maneira subestimada de desestressar" (portal Vice, 2017) e — o melhor título de todos — "Os alimentos kosher de marijuana são uma necessidade no shabat para os judeus praticantes maconheiros" (revista LA Weekly, 2017).
Madison, portanto, realmente se dedica ao tema. Para quem preconceituosamente acha que existe algum estereótipo num defensor das drogas, ela se distancia de todos: é uma mulher jovem, que se veste discretamente, sem trejeitos marcantes, e que mantém uma postura serena. No ano passado, foi uma das idealizadoras do Jewish Psychedelic Summit, evento com dois dias de debates virtuais e com a participação de mais de 40 convidados, entre cientistas, ativistas e artistas.
Ela diz que busca compreender como as pessoas podem transcender suas mentes para alcançar um estado superior, "seja através do ácido ou através de Deus". O interesse vem de família: seu pai é Bruce Margolin, famoso advogado criminal americano que sempre defendeu a legalização e teve entre seus clientes a banda Guns N' Roses, a atriz pornô Linda Lovelace e o papa do LSD, Timothy Leary.
— Mas meus pais me colocaram para estudar numa escola judaica. Eu estudava a torá enquanto em casa eles faziam o Hare Krishna — contou Madison. — Hoje eu realmente acredito que os psicodélicos podem revolucionar o judaísmo, podem nos conectar de novo à divindade coletiva dentro de cada um de nós.
A defesa da tese de Madison começa com o trauma. Na psicologia, o trauma é uma resposta a acontecimentos extremos que marcam a identidade de uma pessoa. Para os judeus, o trauma mais evidente e recente é o holocausto, mas Madison lembra que ao longo da História houve outros momentos, como o êxodo judaico dos países árabes e a Inquisição Espanhola, que fortaleceram o trauma coletivamente.
— O trauma gera um sentimento de insegurança. Ele pode resultar em ansiedade, depressão, desconfiança ou neuroticismo. E esse trauma se expressa fisicamente, no corpo. Tanto que uma forma de você tentar se livrar dessas sensações negativas é você se sacudir. Ou dançar — diz Madison. — Para liberar o trauma, uma dança com o psytrance funciona muito bem. As pessoas comparam a festa do Rosh Hashaná (ano novo judaico) na cidade ucraniana de Uman, em que milhares de judeus ortodoxos hassídicos se reúnem todos os anos, com o Burning Man (festival de contracultura americano).
Para ela, as drogas são uma forma de combater o trauma de dentro para fora. A etimologia da palavra "psicodélico", lembra Madison, dá uma pista do efeito: manifestação da mente.
Ela apoia sua defesa em pesquisas tanto pelo lado científico quanto pelo lado judaico. No primeiro caso, ela cita trabalhos em conjunto da Universidade Johns Hopkins e da Universidade de Nova York que mostraram que a psilocibina, substância de cogumelos alucinógenos, ajuda a aliviar o sofrimento de pacientes terminais com câncer. Também lembra que a forma pura do ecstasy, o MDMA, está perto de ser aprovada nos Estados Unidos para tratar depressão e transtorno de estresse pós-traumático.
Já no campo religioso, sua principal referência é o movimento Renovação Judaica, surgido nos Estados Unidos dos anos 1960, com fortes ligações com a contracultura. O nome mais citado por Madison é do rabino Zalman Schachter-Shalomi (1924-2014), sobrevivente do Holocausto e um dos fundadores da Renovação Judaica. Zalman foi amigo do guru de yoga Baba Ram Dass, tomou LSD com Timothy Leary, e defendia o resgate de antigas tradições de música, misticismo e meditação na prática do judaísmo.
— Usar um psicodélico não é como usar um remédio e achar que vai melhorar de alguma doença. Você não toma um ácido e fica curado. Os psicodélicos nublam as linhas que existem entre o espiritual e o medicinal, entre o recreativo e o terapêutico — afirma. — No caso do judaísmo, se o trauma é a desintegração, a cura é o processo de reintegração. É uma forma de reintegrar corpo e alma.
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