Jornalista: Giovana Girardi
01/11/19 - Em meio à onda antivacina em todo o mundo e ao ressurgimento do sarampo, dois estudos publicados ontem nas revistas Science e Science Immunology indicam que não vacinar pode deixar o organismo vulnerável não só à infecção como a várias outras doenças a longo prazo. As pesquisas feitas de modo independente com 77 crianças não vacinadas – antes e depois de a comunidade na Holanda onde moram sofrer um surto – observaram que a infecção por sarampo acaba enfraquecendo o sistema imune contra outros vírus e bactérias por até três anos.
Ocorre o que os cientistas chamaram de “amnésia imune”. Ou seja, o vírus “apagou” a memória que as crianças tinham contra doenças com as quais elas já haviam tido contato. É essa memória que permite que o corpo se lembre de encontros anteriores com vírus e bactérias e possa reagir.
O trabalho publicado na Science por pesquisadores do Instituto Médico Howard Hughes, de Boston, da Escola de Medicina de Harvard e de outras instituições dos Estados Unidos, da Holanda e da Finlândia descobriu que o sarampo dizimou de 11% a 73% do repertório de anticorpos das crianças dois meses depois da infecção. Elas ficaram quase tão vulneráveis quanto um recém-nascido.
São os anticorpos que temos que nos protegem, por exemplo, de ter de novo catapora, herpes ou uma pneumonia que já tenha nos afligido no passado.
Mas nos infectados por sarampo isso some por um tempo. Os pesquisadores também checaram o sistema imune de crianças vacinadas contra o sarampo e não observaram essa perda no restante do sistema imune.
“Imagine sua imunidade contra patógenos como carregar um livro de fotografias de criminosos. E alguém faz um monte de buracos neles”, comentou o primeiro autor do estudo, Michael Mina, pesquisador de pós-doutorado na Escola Médica de Harvard e do Brigham and Women’s Hospital, na época do estudo, e agora professor assistente de Epidemiologia na Escola de Saúde Pública de Harvard.
A prática clínica e outros estudos já haviam indicado que crianças e adultos infectados com sarampo passam por um processo de imunodepressão. E ficam por algum tempo mais suscetíveis a outras doenças depois de se contaminarem. Os trabalhos de agora conseguiram ver como isso ocorre.
A “sorte” foi eles terem conseguido trabalhar com um grupo muito específico, do qual foi possível obter dados antes e depois da infecção. Em 2013, o pesquisador Rik de Swart, do Erasmus University Medical Center, de Roterdã, havia coletado amostras de sangue de 77 crianças não vacinadas de uma comunidade ortodoxa protestante.
Pouco tempo depois, o local teve um surto de sarampo. Ele voltou lá e coletou novas amostras. Entre a primeira e a segunda visita, passaram-se dez semanas. Anos depois, com uma nova tecnologia de detecção de vírus chamada VirScan, Stephen Elledge, geneticista do Howard Hughes, e colegas avaliaram o material. Como era de se esperar, havia nas amostras anticorpos para sarampo, mas praticamente todos os outros haviam desaparecido.
O outro estudo, publicado na Science Immunology, usou os mesmos dados coletados por Swart e complementou o achado ao analisar especificamente o impacto sobre as células B do sistema imunológico. “Essas são as produtoras de anticorpo, de memória – aquelas células que já foram previamente ativadas e, por isso, ao serem desafiadas novamente pelo antígeno, conseguem responder mais rapidamente e melhor”, explicou a pesquisadora Ana Paula Lepique, do Departamento de Imunologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Imunização
Os resultados reforçam a importância da vacinação ampla não só para prevenir sarampo, mas para evitar o enfraquecimento da “imunidade do rebanho”. “No fim, é simples. Existe uma vacina contra sarampo, que é eficiente e que protege contra a infecção. Se a criança não for vacinada, ela pode ser infectada. E se ela for infectada perde boa parte da sua resposta imune de memória. Não vacinar uma criança expõe ao sarampo e, ainda se ela se recuperar, estará exposta a outras doenças secundárias”, comenta Ana Paula.
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