por Fabiana Cambricoli
O Estado de S.Paulo
29/09/19 - Internacionalmente conhecida por integrar um dos principais corredores de tráfico da América do Sul, a cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero vem passando por uma transformação nos últimos dois anos. Não que a atividade criminosa tenha cessado. A diferença é que se somaram ao cotidiano, marcado por seguranças armados em cada esquina e crimes bárbaros, milhares de brasileiros vindos de diferentes regiões em busca de um sonho: o diploma de Medicina.
Basta andar pela cidade, que faz fronteira com Ponta Porã (MS), e pelos corredores das faculdades para notar que esse movimento migratório é expressivo. Na maioria das instituições de ensino, só se ouve o português. No entorno das universidades, é comum ver a oferta de coxinha e pastel, com preço em reais. Cresce ainda a construção de edifícios para repúblicas de estudantes.
Habitada por 116 mil pessoas, Pedro Juan Caballero tem nove faculdades de Medicina, nas quais estudam pelo menos 12 mil brasileiros. O número é superior, por exemplo, ao de vagas ofertadas por ano por todas as universidades públicas do Brasil (10,6 mil). A migração em massa não é exclusiva de Pedro Juan nem do Paraguai. Universidades da Argentina e da Bolívia também vêm recebendo nos últimos anos um contingente de estudantes de fora. Números inéditos do Ministério das Relações Exteriores (MRE) obtidos pelo Estado mostram que as faculdades de Medicina desses três países sul-americanos já reúnem cerca de 65 mil brasileiros. O número equivale a mais de um terço do total de alunos de Medicina de todo o Brasil. Contando universidades públicas e privadas nacionais, são 167 mil estudantes no curso, segundo o Censo da Educação Superior de 2018.
A situação chamou a atenção do Ministério da Educação (MEC), que, no ano passado, solicitou aos consulados dos três países informações. O Itamaraty preparou um relatório. No documento, ao qual o Estado teve acesso, os cônsules detalham uma série de dificuldades vividas pelos brasileiros e relatam falhas no sistema de ensino. Alguns dos cursos começam a funcionar sem sequer ter a habilitação do governo local. Outros até têm credenciamento, mas sofrem com estrutura precária, como falta de laboratórios e bibliotecas adequadas.
Dificuldades econômicas e com o idioma, cobranças irregulares por parte das universidades e até denúncias de abuso sexual de professores são mencionados. “O meu relatório não foi muito positivo porque não posso esconder do governo brasileiro o que os alunos enfrentam todos os dias aqui”, disse o cônsul em Pedro Juan, Vitor Hugo de Souza Irigaray.
É a limitação econômica que tem levado tantos estudantes a optarem por estudar Medicina fora do País. Atraídos por mensalidades que variam de R$ 700 a R$ 2 mil e pela facilidade de ingresso no curso (quase nenhuma das instituições realiza vestibular), os brasileiros veem na graduação no exterior a única forma de seguir a carreira médica e, assim, ter a chance de um futuro mais próspero ao regressar ao Brasil, onde o valor mensal cobrado pelas faculdades de Medicina fica entre R$ 6 mil e R$ 10 mil.
Para além dos preços e facilidades no ingresso, o que provocou o boom de estudantes nos últimos anos foi, segundo alunos e diretores de faculdades, a possibilidade de trabalho no Brasil pelo programa Mais Médicos. “Começou a criar um sonho de que esses estudantes conseguiriam voltar ao Brasil e trabalhar sem revalidar o diploma”, critica Diogo Leite Sampaio, vice-presidente da Associação Médica Brasileira (AMB).
Em uma das faculdades visitadas em Pedro Juan, o número de vagas passou de 45 em 2017, quando o campus foi aberto, às atuais 4,5 mil. “Quando cheguei aqui, em 2016, eram cerca de 8 mil brasileiros estudando Medicina. Hoje, são de 12 mil a 13 mil. Só que nas faculdades mais novas, que ampliam as vagas indiscriminadamente, o ensino deixa muito a desejar”, disse o cônsul.
In loco
Em algumas universidades, a situação precária citada pelo cônsul é evidente até para leigos na área de formação médica. Em Pedro Juan Caballero, a reportagem visitou seis das nove faculdades médicas e falou com alunos. Pelo menos uma das instituições, a Universidade Privada del Guairá (UPG), está funcionando de maneira irregular, sem a habilitação do Conselho Nacional de Educação Superior (Cones). Mesmo assim, acumulava, em junho, 200 alunos – mais de 90% deles brasileiros.
O campus da faculdade foi improvisado em um galpão de metal em uma rua de terra. Embora a UPG já tenha estudantes desde outubro e cursando até o 3.º ano do curso (transferidos de outras instituições), os laboratórios ainda estão sendo montados. Em junho, não havia, por exemplo, laboratório para estudo de anatomia (necrotério), disciplina básica nos primeiros anos da carreira. Apesar disso, a faculdade tem apostado no marketing. Na porta de entrada do escritório da unidade, um cartaz, em português, oferece desconto aos alunos que trouxerem amigos para estudar na faculdade. A UPG é uma das mais baratas da região, com mensalidades a partir de R$ 700.
A segunda faculdade mais econômica da cidade, embora conte com a habilitação do Cones e venha tentando modernizar sua estrutura nos últimos anos, também tem problemas em sua estrutura. Com mensalidade de cerca de R$ 700, a Universidade Politécnica e Artística do Paraguai (Upap) até reúne laboratórios, mas no necrotério, por exemplo, não há cadáver disponível para as aulas de anatomia.
Outro problema de quase todas as faculdades visitadas é a biblioteca, geralmente restrita a quatro ou cinco prateleiras, com poucos exemplares. No documento elaborado pelos consulados ao MEC, há relatos ainda de falhas na organização da grade curricular, com aulas vagas e matérias incompletas. “Como os mesmos professores dão aula em várias faculdades, às vezes acontece de eles não conseguirem terminar a disciplina”, diz o estudante Vitor Lima, de 23 anos, natural de Goiânia e estudante do 2.º ano em Pedro Juan.
Mesmo algumas faculdades que hoje contam com a habilitação para funcionar abriram as portas em situação irregular. A situação é comum na região da fronteira. “A minha faculdade mesmo não estava regular quando entrei, e eu não sabia. Mas, ao longo dos anos, ela foi atrás dos documentos e hoje está tudo certinho”, afirma Vanessa Sibely Veronica Santos da Silva, de 20 anos, que está no 4.º ano da Universidade Sudamericana. A jovem é de Rolim de Moura (RO) e decidiu migrar para o Paraguai por causa dos altos preços das faculdades no Brasil. “As que eu pesquisei na minha região estavam entre R$ 7 mil e R$ 10 mil. Quando vim para cá, a mensalidade era R$ 600.”
Reputação
Mas nem todas acumulam problemas. Das nove, duas têm melhor reputação e conseguiram o selo da Agência Nacional de Avaliação e Acreditação da Educação Superior (Aneaes), certificação de qualidade. Nessas instituições, as mensalidades variam entre R$ 1,4 mil e R$ 1,8 mil. Uma delas, a Universidade del Norte (Uninorte), tem tentado modernizar a estrutura. “No morgue, temos dez cadáveres para estudo. Temos também sala de simulação com um sistema de som que reproduz sons cardíacos e pulmonares para a prática dos alunos”, disse Rubén Gorgonio Medina Franco, coordenador da carreira de Medicina.
A Universidade Pacífico (UP), outra com certificação da Aneaes, está finalizando a construção de um moderno prédio na entrada da cidade, com hospital universitário para as práticas. “A primeira parte será aberta em 2020”, relata Natalia Vega, diretora de marketing da UP. Outra que pretende construir no futuro um hospital próprio é a Universidade Central do Paraguai (UCP). A instituição é uma das mais novas da região – abriu em 2017 –, mas já lidera em número de alunos: 4,5 mil, mais de 90% brasileiros. Para atrair todos os perfis, a instituição instalou até uma creche para filhos de estudantes.
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