A agência de fármacos e alimentos dos Estados Unidos (FDA) deu um pequeno passo burocrático na terça-feira de Carnaval (5), ao liberar o spray nasal Spravato (esketamina) para tratar depressão. Pode ser também o primeiro de um salto gigantesco na psiquiatria, ao desobstruir o caminho para um renascimento dos remédios psicodélicos.
Há cerca de 12 milhões de pessoas deprimidas no Brasil. No mundo todo, seriam 300 milhões. Estima-se que por volta de um terço desses doentes sofram com a forma resistente do transtorno mental, definida pela situação de pacientes que tentaram dois ou mais medicamentos antidepressivos sem sucesso.
Novo tratamento para depressão aprovado nos EUA é um composto chamado “esketamine”, um spray nasal desenvolvido pela Janssen Pharmaceuticals, subsidiária do grupo Johnson & Johnson, e comercializado sob a marca Spravato.
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Dito de outra maneira: a revolução prometida há três décadas pelos inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), coisas como fluoxetina (Prozac) ou sertralina (Zoloft), ficou pela metade. Não só se revelaram inúteis para muita gente como ainda provocam efeitos colaterais consideráveis, de disfunção sexual a desconforto gastrointestinal.
No caso da depressão, vê-se, a farmacologia psiquiátrica parece ter batido contra um muro. Faltam opções. Não terá sido por outra razão que a FDA aprovou a esketamina pelos trilhos facilitados de “fast track” (via rápida) e “breakthrough therapy” (terapia inovadora), dado o potencial para melhorar a vida de legiões de sofredores.
Não há grande novidade, porém. Esse efeito antidepressivo se conhece há pelos menos 13 anos.
A esketamina é em realidade uma variante molecular espelhada da substância ketamina (ou cetamina), há muito tempo empregada como anestésico. Além de bloquear a dor, ela costuma induzir estados oníricos, alucinações e efeitos dissociativos na mente de quem a recebe.
O efeito se assemelha ao de drogas psicodélicas como LSD, psilocibina (presente em cogumelos Psilocybe cubensis) e DMT (um dos componentes da ayahuasca), todos relacionados com o neurotransmissor serotonina. A ketamina, porém, age sobre receptores no cérebro para outro composto, glutamato.
Já se conhecia seu benefício para deprimidos, o que tem motivado o emprego “off label” (sem prescrição na bula) em algumas clínicas. Ocorre que se trata de uma substância poderosa, como todo psicodélico, e não se recomenda o uso indiscriminado ou descontrolado (muito menos por adolescentes ou por quem tem tendências psicóticas). Daí todo o cuidado com que a FDA cercou a liberação da esketamina.
O spray só poderá ser usado em consultórios ou clínicas médicas, duas vezes por semana de início, e o paciente tem de ser monitorado por pelo menos duas horas. Além disso, a pessoa precisa estar sendo tratada com algum outro antidepressivo tradicional e não pode levar o frasco de esketamina para casa.
Ainda não se conhece em detalhe por que o tipo de viagens propiciadas pela ketamina e por outros psicodélicos ajuda os deprimidos. Apesar disso, há grande expectativa com essa nova classe de medicamentos.
Nova, em verdade, não: uma droga como o LSD causou furor nos anos 1950 e 1960 como fármaco produzido comercialmente pela Sandoz, sob o nome Delysid, e usado, por exemplo, contra dependência de álcool. Isso até entrar na parafernália da contracultura hippie, passar por experimentos desastrosos na CIA e em seguida cair em desgraça, passando para a lista de substâncias proibidas nos EUA e alhures.
Há estudos em curso sobre o potencial de MDMA (base do ecstasy), LSD e psilocibina para tratar uma variedade de transtornos psíquicos, da depressão ao estresse pós-traumático –inclusive no Brasil. A ayahuasca foi testada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em pacientes com depressão resistente, gerando bons resultados.
Decerto há grande rejeição a essas substâncias (para não dizer preconceito) nos círculos acadêmico e proibicionista, pela má fama que adquiriram como drogas recreativas. A FDA, ao permitir o uso de esketamina em ambiente controlado e sob supervisão médica, estabelece a moldura terapêutica adequada para que possam renascer sem reviver velhos fantasmas.
Há um lado B nessa decisão, contudo. Por que só agora se libera o uso como antidepressivo? O efeito já se encontrava estabelecido para a ketamina, afinal. Mas esse é um composto barato, licenciado pela FDA em 1970, para o qual não cabia patente.
A esketamina, por outro lado, pôde ser objeto de patente. Com isso, a farmacêutica Janssen se tornou capaz de cobrar uma fortuna, até US$ 885 (quase R$ 3.500), por aplicação, ou mais de R$ 27 mil por mês no início do tratamento.
A diferença está em que, agora, com a chancela da FDA, tal custo poderá ser assumido pelas seguradoras de saúde dos EUA. No caso da ketamina, a prescrição “off-label” tinha de ser paga do bolso do próprio doente.
Há mais de uma década esse remédio promissor poderia estar ajudando muita gente a sofrer menos, mas a nova indicação não interessava aos grandes laboratórios. É deprimente, em certo sentido (passe o trocadilho).
O emprego de MDMA contra estresse pós-traumático é a terapia que se acha mais perto de ganhar aprovação da FDA, o que deve acontecer nos próximos anos por iniciativa da Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps, na sigla em inglês). Veteranos de guerra, policiais, bombeiros, vítimas de violência e todas as pessoas sofrendo com transtornos mentais torcem para que a ressurreição psicodélica não pague tributo tão alto aos deuses do mercado.
Fonte: UOL
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