Correio Braziliense
Jornalista: Cláudia Dianni
07/12/19 - Diagnosticada com fibrose pulmonar aos 30 anos, a educadora física Liège Gautério, de Porto Alegre (RS) entrou na lista de espera por um novo pulmão aos 38 anos. Durante e espera, ela chegou a usar oxigênio 24 horas por dia e precisou da ajuda de uma cadeira de rodas. Esperou pelo órgão durante cinco meses. Como seu estado de saúde piorou muito, entrou na lista de prioridade. Em setembro de 2011, chegou o novo pulmão. Pouco tempo depois da cirurgia já se sentia outra pessoa, mas tinha uma curiosidade: quem teria sido a pessoa que lhe devolveu a respiração?
“No dia do transplante, por acaso, meu pai estava navegando na internet e viu uma notícia sobre uma moça de 22 anos, que havia morrido em um acidente de moto, em Bagé (RS), e a família tinha decidido doar os órgãos. Enquanto estava sendo preparada para fazer a cirurgia, no hospital me disseram que o pulmão estava vindo de Bagé. Liguei os pontos. Pesquisei e entrei em contato com a família.
A história de Liège é uma exceção, pois a identidade de doadores e receptores de órgãos é resguardada por lei, conforme estabelece o artigo 52 do Decreto nº 9.195/97, que regulamenta a Lei dos Transplantes, nº 9.434/97.
De acordo com a diretora da Central Estadual de Transplantes do DF, Joseane Vasconcellos, o sigilo tem a finalidade de proteger ambas as partes do ponto de vista ético, jurídico e emocional. Um deles é evitar que famílias doadoras possam tentar se beneficiar financeiramente de receptores sob o argumento de que o órgão do familiar falecido salvou a outra vida. “A legislação é feita prevendo as piores situações. Não quer dizer que elas aconteçam, mas o objetivo é proteger as partes”, explica. “A doação de órgãos é um ato voluntário, ou seja, não se deve esperar nada em troca disso, nem mesmo o afeto do outro, até porque, a curiosidade pode levar o receptor a procurar a família doadora, que pode reviver a situação de luto e isso, nem sempre, é desejável”, afirma.
Reações psíquicas
“O receptor pode desenvolver a fantasia de que o órgão recebido possa interferir em sua trajetória de vida, o que pode desencadear reações positivas ou negativas, podendo até provocar a rejeição orgânica do órgão, a depender do tipo de informação sobre o doador que ele (o receptor) tem acesso, e o efeito dessa informação sobre a sua psique”, explica Graça Maria Marino Totaro, psicóloga especializada em transplantes. “Essas fantasias podem envolver informações relativas ao gênero do receptor, orientação sexual, constituição psíquica ou condições de vida do doador”, exemplifica, e esclarece que as fantasias podem acontecer de forma inconsciente, ou seja, sem que pessoa perceba.
No caso das famílias ou relacionamentos próximos do doador, a curiosidade é menos frequente até porque a depender do caso, a doação dos órgãos pode beneficiar até oito pessoas. A curiosidade e o sentimento de conexão ocorre principalmente no caso do coração, que, simbolicamente, está mais relacionado aos afetos, esclarece a psicóloga. “Isso não ocorre com todas as famílias. Geralmente as famílias doadoras têm o entendimento de que aquela doação é voluntária e para manter outras vivas e não a vida de seu parente no corpo de outro”, diz.
Foi o caso de Shirley da Silvia Telles, de Londrina (PR) quando decidiu doar os órgãos da mãe Idenilda da Silva Telles, quando, há 10 anos, teve morte encefálica, aos 53 anos, depois e cair de uma escada. “Autorizamos a doação, mas nunca nos disseram para quem tinha ido os órgãos, nem quantos tinham sido aproveitados. E nós também nunca perguntamos, mas tenho uma certa curiosidade. Sou cristão e me sinto bem em saber que ajudamos outras pessoas, mesmo sem saber quem. Eu tenho dois filhos e, se um dia um deles precisar de um órgão, eu quero que haja doações”, relata.
Vamos juntas
No caso de Liège, nenhuma das possíveis situações que o sigilo busca evitar ocorreu. Ao contrário, ela desenvolveu uma relação saudável e afetuosa com a possível família doadora. “Nunca me confirmaram, nem no hospital, nem na Central Estadual de Transplantes. Mas eu sei que é ela. Falo com mãe dela por mensagem quase todos os dias. Mando sempre um bom dia, e ela me chama, carinhosamente, de filha número dois. Eu recebi uma vida dos meus pais e uma outra de alguém que eu nem conhecida. É algo muito emocionante”, diz Liège, que desde que recebeu o novo pulmão se dedica a fazer palestras sobre doação de órgãos e a divulgar a causa nas redes sociais. “Descobri o nome da doadora no Facebook de uma amiga dela, onde tinha uma foto. Foi bom para mim, pois hoje eu tenho um rosto para agradecer. Quando vou dar uma palestra, eu chamo ela. Digo: Marilise, vamos lá. Temos mais uma missão”.
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