Dente do camundongo reparado e vivo após seis semanas |
PHILLIPPE WATANABE
FOLHA DE SÃO PAULO
Dentes com cárie que naturalmente, sozinhos, conseguem se regenerar sem o uso de obturação. Ou algo parecido. Conseguir essa façanha era o objetivo de um cientista brasileiro que liderou estudo publicado no início deste ano na revista "Scientific Reports", do grupo Nature.
Para o tratamento de cáries, normalmente uma visita ao dentista e realização da famosa obturação (ou a aplicação de géis) são suficientes para tudo voltar ao normal.
Contudo, nos casos mais graves, em que polpa do dente acaba exposta, mesmo o melhor tratamento disponível hoje modifica a estrutura natural dentária. Nele, o buraco causado pela cárie é vedado e preenchido por uma espécie de cimento, o MTA.
Foi em busca de formas mais naturais de tratar o problema que Vitor Neves, doutorando bolsista do programa federal Ciência sem Fronteiras, junto a uma equipe da King's College, de Londres, iniciou sua pesquisa.
A ideia da equipe foi utilizar e estimular as já conhecidas células-tronco presentes na polpa do dente.
Primeiro, os pesquisadores fizeram buracos que chegavam à polpa dos dentes molares de camundongos. Eles escolheram especificamente esses dentes pela semelhança fisiológica com os dos humanos -os incisivos dos roedores crescem durante toda a vida.
Depois disso os cientistas encharcavam uma minúscula esponja biodegradável de colágeno com uma droga chamada tideglusib. Esse medicamento, que estimula a multiplicação e a regeneração celular, já foi testado para tratamento de demências, como o mal de Alzheimer.
O próximo passo era colocar a esponja no buraco criado e observar os resultados pelas seis semanas seguintes.
Após esse período, os pesquisadores observaram a recuperação total da dentina afetada do roedor e o desaparecimento da esponja. Segundo eles, o tideglusib serve como uma superestimulante para as células-tronco que irão reparar o dente.
"O modelo é baseado na biologia de diferenciação celular. É realmente estimular o potencial natural do dente. A gente viu que ele conseguiu se reparar sozinho", diz Neves.
O cientista afirma que um dos diferenciais da pesquisa é que tudo o que foi usado no tratamento já é conhecido de estudos anteriores. "É como se você fosse ao mercado e juntasse o iogurte e a granola. Está tudo pronto."
DESAFIOS
Um dos maiores desafios da continuidade da pesquisa, segundo Neves, é a escala.
Os dentes dos camundongos são extremamente pequenos. Desse modo, para garantir o funcionamento do tratamento, a equipe da King's College já iniciou testes em animais maiores -ratos.
"Vamos tentar aumentar o tamanho da cárie. Se a gente conseguir tratar essa lesão maior, passamos para humanos", diz Neves. Com as diferenças de tamanho, algumas adaptações serão necessárias, como a concentração e a quantidade da droga usada.
Se tudo correr como esperado pela equipe, testes em humanos serão possíveis durante 2018 e, quem sabe, o tratamento já poderia ser aplicado por dentistas em cerca de cinco anos.
Neves afirma que não há risco de intoxicação relacionada ao tratamento, já que a quantidade utilizada da droga é muito pequena, na casa dos picogramas (um trilionésimo de um grama).
Para José Imparato, presidente da ABO (Associação Brasileira de Odontopediatria) e professor da USP, a proposta é extremamente interessante e sem similares na literatura científica atual. O tratamento, porém, seria destinado somente aos casos mais graves de cárie, quando há exposição da polpa.
Ele afirma que hoje esse tipo de caso é mais difícil de ser encontrado. "Cada terapia que surge consegue preencher uma lacuna", afirma Imparato. Para ele, tratamentos mais comuns e disponíveis hoje continuarão necessários para muitos casos.
Imparato também destaca a naturalidade envolvida no processo (com estimulação para o próprio dente se regenerar e a esponja biodegradável), mas diz que "para dente humano, que é maior, precisa de mais estudo".
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