Há um crescente processo de judicialização no país pondo em destaque o direito de acesso ao uso de Cannabis para fins medicinais. Somente de 2015 a 2016 foram interpostas 63 ações judiciais nesse sentido contra o Ministério da Saúde, e dados da Anvisa apontam o aumento progressivo de prescritores e pacientes autorizados a importar canabinoides para variados tratamentos.
Além da mobilização de associações de pacientes e de mães aflitas para conter as convulsões epiléticas de suas crianças, contribuem para essa corrida aos tribunais algumas dúvidas e incertezas com o marco regulatório brasileiro. Desde 2014, é permitido o uso compassivo de extratos de CBD para tratamento de epilepsia em crianças e jovens. E, em 2015, a Anvisa passou a autorizar, em caráter excepcional, a importação de produtos contendo CBD e THC por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado e para tratamento de saúde.
Conhecida há milênios, a Cannabis foi usada como remédio por diferentes civilizações ao redor do mundo. No início do século 20, várias opções de medicamentos feitos a partir da planta estavam à disposição dos pacientes, até que os Estados Unidos impuseram uma política de proibição e repressão que foi seguida globalmente.
No entanto, a partir da descoberta do sistema endocanabinoide, em 1990, foram surgindo evidências de sucesso dos canabinoides com finalidades terapêuticas e o uso medicinal da planta passou a ser suportado por robustas evidências científicas.
Trata-se de mais um desafio para as autoridades reguladoras de medicamentos, uma vez que a constatação pautada na ciência de que a Cannabis é mais uma planta da qual podem ser obtidos medicamentos eficazes e seguros confronta o fato de a espécie vegetal estar incluída em tratados internacionais, como a Convenção Única sobre Entorpecentes 1961 ou a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, restringindo e punindo seu comércio e uso.
Neste cenário, reveste-se de alta relevância a posição assumida publicamente pela Organização Mundial da Saúde (OMS), após uma revisão crítica do Comitê de Especialistas em Drogas e Dependência (ECDD), de recomendar uma reclassificação da Cannabis nos dois principais tratados internacionais de controle de drogas, de modo que não constituam uma barreira ao acesso e à investigação para uso médico. De acordo com o ECDD, “preparações de Cannabis mostraram potencial terapêutico para o tratamento da dor e outras condições médicas, tais como epilepsia e espasticidade associadas à esclerose múltipla”.
O ECDD fundamentou suas conclusões com base em análises de cada substância relacionada com Cannabis feitas por especialistas de cinco áreas da ciência. Parte do processo da revisão incluiu uma sessão aberta na qual representantes da sociedade civil sociedade tiveram a oportunidade de expressar seus pontos de vista e experiências sobre os usos da Cannabis. As conclusões pautadas nas ciências médicas prevaleceram e abriram espaço para um ajuste nos tratados internacionais.
Não há previsão de quando a recomendação será avaliada ou se será adotada. Isso vai depender da colaboração entre a OMS e seus pares dentro da ONU que representam o combate às drogas, como o Comitê Internacional de Controle de Narcóticos (INCB),cujo presidente já deixou claras as suas preocupações: controlar a produção e o fornecimento de Cannabis para uso médico conforme exigido pelos tratados, prover estimativas e estatísticas dos requisitos nacionais e seu uso para fins médicos, assegurar a supervisão médica e regulamentar adequada do uso medicinal, manter a integridade de seus sistemas de regulamentação farmacêutica.
No momento em que o todo o mundo está lançando um novo olhar para a Cannabis, o Brasil tem a oportunidade de se unir a grandes mercados e assumir um papel de liderança nessa discussão. Para isso, basta dar valor aos renomados cientistas que tem, reconhecer a autonomia técnica da Anvisa e valorizar as questões de saúde envolvidas. Caso contrário, vai ficar para trás. Dirceu Barbano – Farmacêutico, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (2011-2014).
Fonte: Folha de S. Paulo
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