Joana Adissi, diretora geral de Vacinas da Sanofi no Brasil, chegou a pensar em deixar a vida corporativa (Foto: Anna Carolina Negri)
A diretora geral de Vacinas da Sanofi se diz muito à vontade em assumir erros e dúvidas -- e lamenta o modelo de gestão masculino que não admite vulnerabilidade
by MARINA MONZILLO | Época Negócios
A executiva Joana Adissi acumulou 23 anos de experiência em multinacionais antes de chegar, em janeiro de 2022, ao cargo de diretora geral de Vacinas da farmacêutica Sanofi no Brasil. Antes, passou por outras organizações gigantes, como Diageo, Unilever e Reckitt Benckiser. Nessa trajetória, identificou em si mesma um comportamento comum no mercado: mimetizar certos padrões de comportamento, a fim de conseguir aceitação e avançar na carreira. Ela afirma que, há cerca de cinco anos, percebeu que havia criado uma personagem. No esforço de mudança, cogitou até abandonar a vida corporativa – mas encontrou um novo ponto de equilíbrio e um novo propósito.
Época NEGÓCIOS - Você está hoje numa posição em que coordena a área de vacinas, que mostram um novo grau de relevância para a humanidade. Isso influenciou a forma de você ver sua carreira?
Joana Adissi - A Sanofi tem quatro unidades de negócio e a de vacinas sempre foi a que eu mais queria, a menina dos olhos. Tem um propósito maravilhoso – você não está falando em tratar, e sim em prevenir doença. Essa área me dá essa alegria, esse quentinho no coração, é muito relevante. E tem essa relação com o setor público, com a saúde pública, que é um novo olhar para mim, um mundo totalmente novo. Antes, sempre trabalhei com consumo.
Com vacinas, você consegue causar um impacto tremendo quando consegue transmitir a visão de que não deveria haver gente morrendo por doença evitável. A Covid-19 traz isso da maneira mais drástica possível. Ao mesmo tempo em que temos o esforço contra a Covid-19, o nível de vacinação contra outras doenças nunca foi tão baixo. As pessoas pararam de se vacinar e temos de novo crianças morrendo de sarampo, de meningite. As vacinas estão disponíveis e precisamos da força da parceria entre público e privado para voltarmos a ter os níveis de cobertura (vacinal) que tínhamos antes.
NEGÓCIOS - O que você destaca como maior aprendizado na sua carreira?
Joana - Um insight importante, um aprendizado duro: você entra em um ambiente que é muito mais masculino e, como ser humano, você quer pertencer. Aí você vai se transformando num personagem para se adequar, para se encaixar naquele modus operandi, para ter o comportamento mais esperado – que é o masculino. É um personagem que é só força, extremamente focado em resultado. Durante a minha carreira, aquilo foi me endurecendo. Sentia que precisava me posicionar: você foi grosso comigo, vou ser grossa com você. Assim, você vai se transformando em algo muito distante da sua essência.
Como mulheres, temos muito mais atributos femininos aflorados. Estou falando de empatia, espírito de equipe, gentileza, respeito, vulnerabilidade. O ambiente corporativo foi moldado sem levar em conta esses atributos femininos. Na medida em que entro no jogo, entro no personagem, estou alimentando um sistema que não quero mais, esse sistema do conflito, que valoriza os atributos masculinos, com posições de comando que não precisam ter empatia nem podem mostrar vulnerabilidade. Quando você (mulher) se comporta dessa maneira, sobrevive, mas não transforma o ambiente. Perceber isso foi uma quebra de paradigma muito importante para mim. Ser aquele personagem cobra um preço alto demais para nós mulheres pagarmos. Fingir ser quem você não é vai ferindo a gente e demanda energia demais.
Comecei a entender o custo, e quando falo em custo, é que você vai endurecendo. É um custo em relação à vida pessoal. Você começa a ver a vida em forma de tarefas: tenho de cuidar da casa, dos filhos, do marido, tenho de trabalhar, tenho de entregar aquilo… esse “tenho de” vira uma loucura. Encarar a vida como uma lista de tarefas é muito penoso.
Foi uma mudança importante. No momento em que percebi isso, decidir ter um objetivo maior. Como você deixa um legado diferente? Para a maioria das mulheres, quando você vai chegando perto dos 40 anos acontece uma quebra. Foi assim para mim e para muitas das minhas amigas. É um momento do reflexão e inflexão. Estou com 44 anos. Quando eu estava com 39 para 40, comecei a refletir: o que estou fazendo da minha vida? Se eu morrer amanhã, o que eu construí, o que eu deixei? O que meus filhos vão falar? Que deixei crescimento de vendas líquidas, maior participação de mercado, entreguei lucro para a empresa em que trabalhei? Isso não está conectado com a minha essência.
NEGÓCIOS – Você pode dar exemplos? Como isso mudou seu jeito de agir?
Joana - Fiquei me questionando se não era o momento de partir para trabalhar em uma ONG, para ter um impacto na sociedade que fizesse mais sentido, de forma que eu conseguisse enxergar o impacto que estava causando. Comecei a conversar com muita gente, fiz um projeto dentro da Sanofi ligado a ONGs. Comecei a conversar mais com ONGs e conforme você entra nos detalhes você percebe como é difícil tirar do papel aquele propósito lindo, como é difícil uma entidade assim sobreviver e conseguir recursos para fazer tudo o que espera.
Nessas andanças, uma pessoa me falou: “você quer impactar a sociedade?”
Respondi “eu quero! É o meu desejo.” E essa pessoa me disse: “Pois então não saia do mundo corporativo. Fique e cresça cada vez mais. No setor privado está o nível de investimento que a gente precisa, a influência e o poder para gerar transformação.”
Aquilo foi um choque para mim. Comecei a pensar em como trazer aquilo para mim e assumir o protagonismo nessa jornada. Quanto mais cresço, mais tenho influência, maior impacto posso causar, mais posso gerar a mudança que considero necessária.
Desde que entendi que tenho de ficar aqui no mundo corporativo e assumir posições cada vez maiores, ter um impacto maior, revi o meu propósito. Como a gente traz para a conversa a vulnerabilidade, a empatia? Como vou olhar o próximo, sabendo que o mundo vai além desse contexto em que eu vivo? A pandemia exacerbou isso. A gente pode ficar bem sabendo que tem tanta gente passando fome, enfrentando doença?
Defini como missão minha humanizar o mundo corporativo. Humanizar no sentido de como a gente consegue despertar os atributos femininos aqui dentro. Não é só por meio da mulher. Todos temos atributos femininos e masculinos. Quando a gente fala de mulher na liderança, é porque podemos acelerar essa transformação. Mas a transformação depende de homens e mulheres. Como a gente dá espaço para esse homem que também foi oprimido e aprendeu que só pode ter atributos masculinos? O homem não pode dizer que não sabe, não pode pedir ajuda, não pode dizer que errou?
Vindo para essa posição de diretora geral, uma das coisas que ouvi é que uma posição extremamente solitária, você não pode pedir ajuda. E fiquei pensando – por quê? Por que não pode pedir ajuda? Por que não pode perguntar? Eu deveria poder dizer para o time: estou colocando o rumo, a estratégia, mas vai ter horas em que não sei para onde ir. Por que não posso dividir isso com as pessoas? É nisso que mais tenho me questionado. Estou nessa posição desde janeiro. Falo dos meus erros com muita facilidade – gente, aqui eu errei, me desculpem, vou tentar reverter… sou muito aberta ao feedback. É assim que a gente constrói. A gente aprende todos os dias e quanto mais a gente aprende, mais a gente percebe o que não sabe. É uma jornada sem fim.
NEGÓCIOS - O que tem de ser feito na sociedade e no mercado para mais mulheres ocuparem cargos de liderança?
Joana - Temos aqui (na Sanofi) o comitê de diversidade e inclusão e sou sponsor do pilar de gênero. O que falta para a mulher assumir mais (cargos de liderança)? Acho que está faltando autoestima para acreditarmos que somos capazes. É claro que existe uma vala de diferença de oportunidades; estou numa situação privilegiada, numa empresa que olha para equilíbrio de gênero como uma pauta importante. Mas acho que a gente ainda não se valoriza.
Temos um grupo de conversa de mulheres e recentemente estávamos discutindo sobre ambição. Essa palavra é super negativa para a gente. Associamos com arrogância, com querer demais. É lindo ver a transformação das mulheres – elas vão vendo “puxa, se eu queria mudar de casa e mudei foi uma ambição que conquistei”.
A gente tem uma capacidade imensa mas só vai chegar mais longe se quiser mais. Vai haver barreiras e ainda existe viés inconsciente – escolhemos os nossos iguais ao pensar em sucessão e, se vivemos em ambientes masculinos, naturalmente são os homens que têm essa prerrogativa, essa abertura maior. Mas precisamos começar a mudar pelo nosso comportamento – eu quero, eu vou, eu estou preparada. Não significa que, porque eu sou uma general manager, não sou boa mãe; não significa que para ter carreira você precisa ser uma pessoa solitária e não construir família. Você vai achar esse ponto de equilíbrio.
NEGÓCIOS – Trouxemos para você uma pergunta da Eliane Siviero de Freitas, CEO da Lanxess: “sei que você atua muito na busca por uma maior humanização do mundo corporativo e me identifico muito com este valor. Em um mundo pós-pandemia que impactou especialmente as mulheres, como fortalecer essa busca por humanização dentro das empresas?”
Joana - A maior oportunidade que vejo é como assumimos o protagonismo pelas mudanças que queremos ver. Podem ser passos pequenos ou grandes, mas precisamos entender que a força do passo individual em conjunto é o que vai nos mobilizar. Como empresa, podemos investir no letramento da nossa população de mulheres e homens para essa tomada de consciência e reflexão de nossos vieses culturais. Formamos aqui um grupo de conversa de mulheres que chamamos de Elas por Elas que tem sido um espaço de troca e suporte incrível para nós. Como marca Medley, de que eu estava à frente até ano passado, ajudamos a divulgar o trabalho de várias ONGs de vulnerabilidade feminina e apoiamos projetos sociais.
NEGÓCIOS - Qual palavra da moda, frase pronta ou clichê corporativo você não aguenta mais ouvir? Por quê?
Joana - Sou feminista e super ativista da causa, mas já cansei de ouvir e não concordo mais com a palavra “luta” para as questões de gênero. Luta significa nós mulheres contra os homens e que teremos um vencedor e um perdedor, e para mim não é isso. Estamos numa jornada de transformação, em que ambos mulheres e homens são oprimidos pela cultura do patriarcado e só seremos capazes de mover se estivermos unidos na causa.
NEGÓCIOS - Qual foi sua melhor decisão profissional?
Joana - A melhor decisão foi quando me abri para mover transversalmente entre diferentes áreas. Comecei minha carreira em Trade Marketing, depois fui para Marketing e depois para Inovação. Esse tripé hoje me faz uma profissional muito mais robusta porque tem o olhar da estratégia, da execução e do planejamento futuro.
NEGÓCIOS – E a pior decisão?
Joana - Não é uma situação específica, mas algumas por que passei pelo mesmo motivo, a auto exigência tão exagerada e presente em nós, mulheres. Alguns exemplos: quando meu primeiro filho tinha um ano eu estava em uma posição regional que me levava a viajar para fora do país com frequência. Era o primeiro filho, a culpa acoplada que temos conosco constantemente, eu queria ficar o mínimo de tempo possível longe, então pegava um avião, chegava lá de manhã, fazia reunião dia 1, dia 2 e já retornava nesse mesmo dia, para estar de volta sempre o quanto antes, ficava exausta...
Ou ainda nessa posição regional, trabalhava com mais de 12 países e recebia uma necessidade do time global de confirmar alguns números em 24 horas, virava noite seguindo os fusos horários para garantir a informação em 24 horas e, por muito tempo, não questionei se havia alguma flexibilidade nesse prazo, precisei de muita terapia para conseguir fazer isso. Hoje, vejo o custo alto e os riscos que essa busca por perfeição causou, em diversas situações que vivi sem necessidade. Dá para ser mais leve!
NEGÓCIOS - Qual é seu melhor hábito?
Joana - Meu melhor hábito é minha disciplina: medito, leio e faço atividade física todos os dias. Isso me equilibra e para mim é uma questão de saúde e sobrevivência. Preciso disso para me manter em paz e plena física e mentalmente.
NEGÓCIOS - E o pior hábito?
Joana - O pior hábito é uma mania de olhar sempre o que está faltando. Tenho feito um exercício diário de celebrar os passos, e de trabalhar o olhar para o meio copo cheio!
NEGÓCIOS - Qual foi seu livro preferido dos últimos tempos? Por quê?
Joana - “Liderança Shakti”, de Saj Sisodia, é um livro que concretiza um pensamento que sempre tive e tem inspirado muito a minha jornada no mundo corporativo. De forma bastante resumida, o livro conta que todos, homens e mulheres, temos (ou deveríamos ter) 50% de atributos femininos e 50% de atributos masculinos. Atributos femininos são, por exemplo, criatividade, colaboração, cuidado, empatia. Quando falamos atributos masculinos, estamos falando de ação, protagonismo e resultado.
O livro explica que todos, homens e mulheres, somos uma combinação desses atributos, todos deveríamos ter os dois lados equilibrados. Não adianta, por exemplo, eu ser criativa se não tenho ação para implementar uma ideia. Ou ser super pragmática, se não tiver cuidado com as pessoas. Essa leitura me levou a entender que é esse equilíbrio que falta hoje no mundo corporativo, que foi criado sem pensar na presença de mulheres nas corporações e sem considerar os atributos femininos como parte relevante do processo humano. Precisamos começar a valorizar os atributos femininos, sejam eles nas mulheres ou nos homens.
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