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Uma análise sobre a resolução da Anvisa que regulariza o software como dispositivo médico
by CAROLINA FIDALGO, FABIANA TOPINI, LARISSA CAMARGO COSTA | Jota
De acordo com levantamentos independentes, atualmente há mais de 500 healthtechs no Brasil [1]. Healthtechs são startups voltadas para encontrar soluções para o setor da saúde. Nesse escopo estão incluídos desde softwares para a concepção de prontuários eletrônicos, ferramentas de marketplace, suporte à telemedicina, homecare, terapias digitais, análise preditiva, biotecnologia, pesquisa, gestão hospitalar até o desenvolvimento de inteligência artificial para auxílio ao diagnóstico médico, dentre outros tipos de produtos e serviços.
Incluem-se, nesse grupo, nomes que já são amplamente conhecidos como a Dr. Consulta, Queima Diária, Gympass e Vittude, empresas que atuam em segmentos de telemedicina, bem-estar e psicologia. Além dessas, muitas outras estão revolucionando a forma como os pacientes são atendidos, relações comerciais são pactuadas e diagnósticos são realizados.
Para grande parte dessas startups, há importantes barreiras à entrada no mercado brasileiro. E muitas são decorrentes de exigências regulatório-sanitárias. Mesmo após a simplificação de processos de licenciamento e instituição de prazos máximos para a análise regulatória, com fundamento na Lei de Liberdade Econômica, ainda é pouco provável que os procedimentos destinados ao licenciamento sanitário de uma startup do setor da saúde e o registro de seus produtos, quando necessário, demore menos de um ano.
Nesta sexta-feira, 1º de julho de 2022, entra em vigor a RDC nº 657 da Anvisa, que dispõe sobre a regularização de software como dispositivo médico (Software as a Medical Device ou SaMD).
O tema não é novo. Antes da edição dessa norma, a Anvisa já entendia que esses produtos estavam sujeitos à sua regulação, com fundamento no disposto na Lei 6.360/1976. O artigo 25 da referida norma afirma que os “aparelhos, instrumentos e acessórios usados em medicina, odontologia e atividades afins, bem como nas de educação física, embelezamento ou correção estética, somente poderão ser fabricados, ou importados, para entrega ao consumo e exposição à venda, depois que o Ministério da Saúde se pronunciar sobre a obrigatoriedade ou não do registro”, estando dispensados “do registro os aparelhos, instrumentos ou acessórios de que trata este artigo, que figurem em relações para tal fim elaboradas pelo Ministério da Saúde”.
O tema foi regulamentado pela RDC nº 185/2001 da Anvisa, que permanece até hoje vigente com alterações. Essa resolução define como equipamento médico todo “produto para a saúde, tal como equipamento, aparelho, material, artigo ou sistema de uso ou aplicação médica, odontológica ou laboratorial, destinado à prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação ou anticoncepção e que não utiliza meio farmacológico, imunológico ou metabólico para realizar sua principal função em seres humanos, podendo, entretanto, ser auxiliado em suas funções por tais meios”.
O problema é que nesse conceito se enquadram os mais diversos produtos, como termômetros, alguns tipos de máscaras, seringas, instrumentos cirúrgicos, equipamentos de imagem, dentre outros. A RDC nº 185/2001 prevê quatro classes de risco (I, II, III e IV) que se refletirão nas exigências regulatórias aplicáveis a cada tipo de produto. Para enquadramento do produto médico em uma destas classes, devem ser aplicadas as 18 regras de classificação descritas no Anexo II daquela resolução.
Sob a égide dessa resolução, havia um cenário de insegurança quanto ao enquadramento de alguns softwares nesse conceito, quanto às exigências aplicáveis ao licenciamento sanitário das empresas desenvolvedoras e quanto à necessidade de obtenção de novo registro a cada atualização realizada pelos desenvolvedores.
Onze anos depois, a Anvisa divulgou a Nota Técnica 4/2012/GQUIP/GGTPS, a fim de prestar esclarecimentos sob o tema, em especial quanto ao enquadramento de softwares na RDC nº 185/2001. De acordo com a Nota Técnica, a depender da natureza e finalidade do software e, consequentemente, da sua classificação de risco, eles poderiam ser sujeitos a registro simplificado, cadastramento ou registro normal.
Em setembro de 2020, a Diretoria Colegiada da Anvisa aprovou a extinção do regime de cadastro para regularização de produtos para saúde de baixo ou médio risco. Nos termos da RDC nº 423/2020, os produtos pertencentes à Classe de Risco II passaram a se sujeitar apenas ao regime de notificação, juntamente com os produtos de Classe I.
A nova resolução mantém essa lógica, prevendo que o “SaMD deve ser enquadrado nas regras e classes de acordo com a Resolução de Diretoria Colegiada nº 185, de 22 de outubro de 2001” (artigo 4º). Softwares classificados nas Classes I e II devem ser notificados. Os demais devem ser objeto de registro.
Com esse histórico normativo em mente, seguem alguns pontos que merecem destaque sobre a RDC nº 657/2022:
- a resolução exclui de seu âmbito de aplicação os softwares para “bem-estar”, “destinados a encorajar a manter o bem-estar, incluindo atividades saudáveis como exercícios físicos, ou a encorajar e o controle da saúde e um estímulo de vida saudável”, mas que não são destinados à prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação ou anticoncepção, bem como aqueles softwares utilizados exclusivamente para gerenciamento administrativo e financeiro, ou que processam dados médicos demográficos e epidemiológicos sem finalidade clínica diagnóstica ou terapêutica (artigo 1º, §2º);
- a resolução isenta da necessidade de regularização aqueles sistemas que sejam desenvolvidos internamente pelo serviço de saúde, sejam utilizados exclusivamente por ele e que se enquadrem nas classes de risco I e II (artigo 5º). Contudo, esses produtos não poderão ser comercializados ou doados;
- havendo dúvida, a empresa deverá realizar uma consulta à Anvisa para fins de classificação do SaMD;
- a resolução possui um capítulo para tratar das alterações pós-registro, esclarecendo que devem ser informadas e sujeitas a peticionamento de alteração as modificações de software que (artigo 16): “I — criem novas funcionalidades ou indicações de uso clínicas; II — afetem significativamente as funcionalidades clínicas, segurança e eficácia clínicos ou desempenho associadas às finalidades previstas anteriormente; e III – descaracterizem a identidade visual, de forma que não seja mais reconhecível o software perante as imagens encaminhadas para a Anvisa”.
Por fim, vale destacar que a nova RDC nº 657/2022 não trata sobre a autorização de funcionamento (AFE) da empresa fabricante desses produtos, de forma que permanecerão sendo aplicáveis os requisitos gerais previstos para as demais empresas responsáveis por fabricar dispositivos médicos.
[1] Algumas fontes independentes de pesquisas podem ser encontradas nos seguintes links: https://forbes.com.br/forbes-tech/2022/06/numero-de-healthtechs-brasileiras-cresceu-16-de-2019-a-2022/; https://startupscanner.com/mapas/health-techs-b788761a?utm_source=anuario&utm_medium=docsend&utm_campaign=anuario-health-2022; https://materiais.distrito.me/mr/healthtech-report
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