Jornalista: Cláudia Collucci
26/10/19 - Na brinquedoteca, Lucas, 2, diverte-se fisgando peixinhos coloridos com Pedro, 1. Ambos estão com pneumonia e internados no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba (PR). Lucas tem plano de saúde; Pedro é paciente do SUS.
Ao completar cem anos neste sábado (26), a maior instituição pediátrica do país se orgulha de seguir firme em um dos princípios que a norteiam desde a fundação por um grupo de mulheres em 1919: o da equidade.
Filantrópico, atende hoje 61,2% dos pacientes pelo SUS, apesar de os recursos públicos terem representado apenas 24,4% da receita em 2018 (pouco mais de R$ 65 milhões do total de R$ 268,6 milhões). Os planos de saúde respondem por 42% da receita e por 38% dos atendimentos.
Isso não impede que o paciente do SUS receba a mesma comida e os mesmos tratamentos, cuidados médicos e leitos de UTI oferecidos ao paciente com plano de saúde ou particular. A diferença entre um e o outro é basicamente a hotelaria dos quartos.
Essa igualdade no tratamento já provocou reclamações de famílias com planos de saúde, que se sentiram incomodadas em dividir espaços, como a UTI, com pacientes do sistema público.
“A caneta do médico aqui é igual para qualquer criança. A gente trabalha muito por garantia de direitos das crianças e dos adolescentes e, às vezes, precisamos lembrar as pessoas de que direitos não são privilégios”, afirma Ety Cristina Forte Carneiro, diretora-executiva do hospital.
Com 378 leitos, sendo 68 de UTI, e oferecendo 32 especialidades médicas, o hospital é referência em média e alta complexidade para crianças do SUS de todo o país, especialmente em cirurgias cardíacas e de reabilitação intestinal e transplantes de medula óssea, de rim e de tecido ósseo, entre outras.
Paradoxalmente, na última década, a participação do SUS na composição da receita do hospital caiu 40,9% —de 41% para 24,4%, entre 2008 e 2018. Ano passado, o déficit, causado principalmente pela defasagem da tabela SUS, foi de cerca de R$ 25 milhões.
“Performance é algo terrível para o SUS. Quanto melhor a gente vai, pior fica porque é mais demanda, mais demanda. E maior fica o gap [descompasso] entre o custo e o que a gente recebe”, diz José Álvaro da Silva Carneiro, diretor corporativo.
Na área de cirurgia cardiológica, por exemplo, há uma fila de mais de 200 crianças à espera de uma vaga. “Temos as urgências, os pacientes que descompensam ou os que já nascem com algum problema. A gente recebe ligações das coordenações municipal e nacional de regulação de leitos, todos pedindo vaga”, diz o médico Leonardo Cavadas Soares, gerente de práticas assistenciais do hospital.
A expertise da instituição também tem feito com que gestantes de outras regiões do país, que já sabem que o bebê nascerá com algum problema cardíaco, se mudem para Curitiba em busca do tratamento que pode salvá-lo.
Hoje, 40% dos leitos da UTI cardiológica são ocupados por recém-nascidos, que ali permanecem por 21 dias, em média, o triplo do tempo de uma criança maior. “O diagnóstico precoce, ainda no útero, e as maternidades com UTI neonatal mudaram a vida dessas crianças, mas as vagas para cirurgia ainda são limitadas”, explica Andréa Lenzi, coordenadora da UTI cardiológica.
Na última década, a saída encontrada pelo hospital para conciliar a alta demanda por atendimentos do SUS e a defasagem das verbas públicas foi uma grande mudança de gestão, associada à diversificação das fontes de renda, como os cursos pagos de graduação e especialização na área da saúde oferecidos pela faculdade que pertence à instituição, e a captação de recursos na comunidade.
Atualmente, mais de 2.200 empresas e 15,5 mil pessoas físicas fazem doações ao Pequeno Príncipe, a maioria por meio da renúncia fiscal. Em 2018, esses recursos representaram 16% do total da receita —R$ 42 milhões. “A renúncia fiscal é um canal de compartilhamento e investimento da sociedade que passou a ser imprescindível para nós”, diz Ety Carneiro.
Com essas verbas, o hospital construiu quatro novos andares, reformou setores, como o da infectologia, da UTI cardiológica e do lactário, e comprou equipamentos de ressonância magnética, tomógrafos e ventiladores pulmonares. “Aqui, todos os respiradores, monitores, são novos. A gente não vê isso nem no serviço privado”, afirma Soares, referindo-se aos equipamentos da UTI cardiológica.
A tecnologia, aliada à revisão de processos e ao treinamento de pessoal, trouxe impactos positivos nos indicadores de qualidade. Em dez anos, a taxa de mortalidade hospitalar caiu de 2,5% para 0,59%, o menor índice da da história da instituição. “Para esse nível de complexidade que temos, se formos nos comparar com serviços desse porte, estamos bem bonitos na foto”, diz Silmara Possas, gerente das UTIs.
As doações também possibilitaram que o hospital inaugurasse em 2011 a sua unidade de transplante de medula óssea, referência no país para doenças raras.
“Era uma angústia ter pacientes com indicação para transplante, que traz grandes chances de cura, e não ter o serviço disponível. Tínhamos que encaminhá-los para outros lugares e eles ficavam na fila aguardando um doador ou um leito”, diz Cilmara Kuwahara, da oncologia pediátrica.
Nesses últimos oito anos, crianças de 21 estados já passaram por transplantes na unidade. Das 202 cirurgias, 130 foram casos de câncer e o restante, erros inatos do metabolismo e imunodeficiências graves.
O menino Enzo, 4, de Belém, foi transplantado aos cinco meses, pesando 2,9 kg. “Ele chegou aqui em um estado bem crítico, menor do que quando nasceu. Deu um certo trabalhinho para nós, mas hoje é uma glória vê-lo, brincando, correndo. É uma criança que, se fosse até poucos anos atrás, não teria sobrevivido”, diz Cilmara.
A experiência levou a família a se mudar da capital paraense para Curitiba definitivamente. “A gente estranha o frio, sente saudade do açaí, do tacacá, mas o que importa é que o Enzo continue sendo atendido no hospital”, diz a mãe Marcelene Silva, 35.
Os recursos vindos das doações permitiram ainda a criação de um laboratório genômico que, além de fazer pesquisa, auxilia na assistência. As crianças atendidas no serviço de oncopediatria passam por exames moleculares que ajudam os médicos no diagnóstico e na tomada de decisão sobre o melhor tratamento.
A oncologista Flora Watanabe, coordenadora do serviço de hematologia e que trabalha há mais de 40 anos na instituição, diz que na década de 1970 os médicos sequer encaminhavam para tratamento as crianças com câncer. “Quando a gente falava em tratar, os pais também não acreditavam. Eles diziam: ‘vai morrer mesmo, melhor que morra em casa’”, lembra a médica.
Ela se recorda de um caso em que teve que implorar para que o pai permitisse que a filha fosse internada e tratada de um linfoma de Burkitt (câncer do sistema linfático). Além de não acreditar na cura, ele temia que, tendo de ficar no local como acompanhante da filha, perdesse o emprego por falta.
A médica ligou para a empresa onde o homem trabalhava pedindo mais tempo. O patrão deu mais cinco dias. O trato foi que, se o tumor diminuísse nesse período, a filha ficaria internada, mesmo sem companhia da família. O tratamento deu certo. A menina hoje é mãe e visitou o hospital recentemente para agradecer a equipe.
Algumas das crianças curadas no hospital se tornaram funcionários da instituição. É o caso da enfermeira Mayara Majevski, diagnosticada com leucemia aos 12 anos e que passou por tratamento durante dois anos. Aos 17 anos, decidiu fazer enfermagem na Faculdade Pequeno Príncipe. “Sempre tive vontade de fazer pelos outros o que fizeram por mim”, conta.
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