por Tara Parker-Pope* e Anahad O’Connor*, do The New York Times
Folha de S.Paulo
09/10/19 - Um novo estudo surpreendente desafiou décadas de aconselhamento nutricional e deu aos consumidores luz verde para comer mais carne vermelha e processada. Mas o que o estudo não diz é que seu principal autor tem laços de pesquisa anteriores com a indústria de carnes e alimentos.
O novo relatório, publicado esta semana no Annals of Internal Medicine, surpreendeu cientistas e autoridades de saúde pública ao contradizer diretrizes nutricionais de longa data sobre a limitação do consumo de carne vermelha e processada. A análise, liderada por Bradley C. Johnston, epidemiologista da Universidade Dalhousie, no Canadá, e mais de uma dúzia de pesquisadores concluiu que os avisos que ligam o consumo de carne a doenças cardíacas e ao câncer não são apoiados por evidências científicas robustas.
Vários cientistas de nutrição e organizações de saúde importantes criticaram os métodos e as conclusões do estudo. Johnston e seus colegas defenderam o trabalho, dizendo que ele se baseava nos mais altos padrões de evidência científica, que a equipe de pesquisadores não relatou conflitos de interesse e conduziu a revisão sem financiamento externo.
Johnston também indicou em um formulário de divulgação que ele não tinha nenhum conflito de interesse a relatar nos últimos três anos. Mas, em dezembro de 2016, ele era o autor sênior de um estudo semelhante que tentou desacreditar as diretrizes internacionais de saúde, aconselhando as pessoas a comerem menos açúcar.
Esse estudo, que também apareceu no Annals of Internal Medicine, foi pago pelo International Life Sciences Institute, ou ILSI, um grupo comercial do setor amplamente apoiado por empresas do agronegócio, de alimentos e farmacêuticas e cujos membros incluem McDonald's, Coca-Cola, PepsiCo e Cargill —um dos maiores processadores de carne bovina da América do Norte.
O grupo da indústria, fundado por um alto executivo da Coca-Cola há quatro décadas, é acusado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e por outros de tentar minar as recomendações de saúde pública para promover os interesses de seus membros corporativos.
Em uma entrevista, Johnston disse que seu relacionamento anterior com o ILSI não teve influência nas pesquisas atuais sobre recomendações de carne. Ele afirma que não denunciou seu relacionamento anterior com o ILSI porque o formulário de divulgação perguntou apenas sobre possíveis conflitos nos últimos três anos. Embora a publicação do estudo, financiada pelo ILSI, caia dentro da janela de três anos, ele aponta que o dinheiro do grupo chegou em 2015 e não era obrigado a denunciá-lo para a divulgação do estudo da carne.
"Esse dinheiro era de 2015 e estava fora do período de três anos para a divulgação de interesses conflitantes", disse Johnston. "Eu não tenho nenhum relacionamento com eles", defende-se.
Os críticos do estudo da carne afirmam que, embora Johnston possa ter cumprido tecnicamente as regras de divulgação ao pé da letra, ele não cumpriu o espírito de divulgação financeira.
"Os periódicos exigem divulgação, e é sempre melhor divulgar completamente, se não por outro motivo, a não ser problemas quando os conflitos não revelados são expostos", disse Marion Nestle, professora de nutrição, estudos alimentares e saúde pública na Universidade de Nova York, onde estuda conflitos de interesse em pesquisas de nutrição. “Nos bastidores, a ILSI trabalha diligentemente em nome da indústria de alimentos; é um grupo de front clássico. Mesmo que o ILSI não tenha nada a ver com o estudo sobre carne —e não há evidências de que a relação exista— o artigo anterior sugere que Johnston está fazendo uma carreira para derrubar a sabedoria nutricional convencional.”
Notavelmente, Johnston e seus colegas pensaram que era importante divulgar completamente seus hábitos alimentares pessoais. O documento inclui um apêndice intitulado "Resumo dos possíveis conflitos de interesse dos participantes do painel", que descreve se cada autor come carne vermelha ou processada e com que frequência. Johnston não relatou conflitos de interesse financeiro, mas revelou que come de uma a duas porções de carne vermelha ou processada por semana.
"Acreditamos que é um viés em potencial que vale a pena divulgar", disse Johnston sobre os hábitos alimentares dos pesquisadores.
Os laços de Johnston com o estudo de açúcar financiado pelo ILSI em 2016 mostram como o ILSI cultivou metodicamente aliados na academia em todo o mundo e como recruta cientistas influentes para ajudar a moldar os conselhos nutricionais globais para combater o que considera ser as diretrizes da indústria anti-alimentos por organizações de saúde.
Quando o Johnston e seus colegas publicaram o estudo sobre o açúcar, eles disseram que o ILSI não tinha nenhum papel direto na condução da pesquisa além de fornecer financiamento, mas posteriormente alteraram a declaração de divulgação nos Anais após a Associated Press obter e-mails que mostravam que o ILSI tinha “revisado” e “aprovado” o protocolo do estudo.
Johnston disse que, quando publicou o estudo sobre o açúcar em 2016, colocou sua conexão com o grupo da indústria de alimentos "na frente e no centro". Ele disse em retrospectiva que era "ingênuo" quando concordou em trabalhar no estudo financiado pelo ILSI sobre orientações sobre açúcar. Foi durante uma teleconferência sobre o estudo do açúcar que ele percebeu a extensão do envolvimento dos números da indústria com a organização. Ele se recusou a dizer quem estava na teleconferência.
"Só percebi que aquilo não era o que esperava quando participei de uma teleconferência com eles e as pessoas se apresentaram", disse. “Então eu vi a reação ao artigo que publicamos, que eu acho que foi um artigo muito bom. As pessoas não receberam essa mensagem. Elas ficaram presas na parte do financiamento. Essa foi uma grande lição para se separar [a ciência e a indústria]. Não vale a pena trabalhar com a indústria", diz.
Christine Laine, editora-chefe do Annals of Internal Medicine, disse que a revista médica pede que as pessoas divulguem seus interesses financeiros, mas confia na integridade do pesquisador e não tenta verificar os formulários. "Estamos realmente deixando aos autores a divulgação", diz. "Aconselhamos os autores a se perguntarem: 'Devo divulgar isso ou não?', se for para errar, que seja divulgando."
Laine observa que as pessoas de ambos os lados da questão da carne têm conflitos de interesse. "Muitas das pessoas que criticam esses artigos têm muitos conflitos de interesse sobre os quais não estão falando", disse ela. “Eles fazem workshops sobre dietas à base de plantas, fazem retiros sobre bem-estar e escrevem livros sobre dietas à base de plantas. Existem conflitos de ambos os lados.”
Laine disse que se Johnston tivesse escolhido divulgar uma relação financeira com o grupo da indústria de alimentos, isso não teria mudado a decisão da revista de publicar a pesquisa. O que importa para os editores e a equipe de revisão, disse ela, é o fato de o grupo ter protocolos claros para examinar os dados e ser transparente sobre seus métodos.
"Eu não acho que teríamos tomado uma decisão diferente sobre a publicação do manuscrito se ele tivesse divulgado os conflitos", disse o Laine. “Certamente sabemos que, no passado, ele fez uma pesquisa nutricional financiada pela indústria. É uma decisão judicial se isso deve ser divulgado. Eu acho que em algum nível há um pouco de barulho em torno disso. Os métodos do estudo que esses pesquisadores fizeram e suas conclusões estão disponíveis, e as pessoas podem discordar disso.”
Gordon Guyatt, presidente do painel de 14 membros que revisou a análise, disse estar confiante de que o trabalho não foi de forma alguma influenciado pela indústria.
"Talvez Brad tenha sido um pouco ingênuo, e eu e Christine Laine tenhamos sido um pouco negligentes por não nos ocorrer que ele provavelmente deveria declarar o dinheiro que recebeu do projeto anterior", disse Guyatt, que é médico e professor da Universidade McMaster, no Canadá. "Tudo isso dito, eu me sinto, pessoalmente, extremamente confortável por não ter efeito sobre o que fizemos".
O Guyatt aponta que há 20 anos ele come apenas peixe e nenhuma outra carne. “Antes de me envolver nessas revisões sistemáticas e de examinar atentamente as evidências, eu tinha três razões para não comer carne —bem-estar animal, meio ambiente e saúde. Agora só tenho dois motivos para não comer carne”, disse.
Os críticos do estudo sobre carne afirmam que ela tem semelhanças com o estudo do açúcar financiado pela indústria e usa o mesmo padrão de avaliação de evidências. Frank Hu, presidente do departamento de nutrição da Harvard T.H, a Escola de Saúde Pública Chan, disse que ficou surpreso ao perceber que Johnston era o líder do estudo da carne e o mesmo pesquisador que liderou a revisão financiada pelo setor que atacou diretrizes que aconselham as pessoas a comer menos açúcar. Ele disse que, em ambos os casos, Johnston reduziu as recomendações de açúcar e carne usando uma ferramenta chamada GRADE, que foi projetada principalmente para avaliar ensaios clínicos de medicamentos, não estudos dietéticos.
"Você não pode fazer um estudo duplo e cego, controlado por placebo, de carne vermelha e outros alimentos em ataques cardíacos ou câncer", disse Hu. "Para fatores alimentares e de estilo de vida, é impossível usar os mesmos padrões de testes de drogas".
Os testes com medicamentos são projetados principalmente para analisar a eficácia e a segurança, disse Hu, enquanto o principal objetivo dos estudos sobre dieta é identificar os fatores de risco que influenciam a obesidade e as doenças crônicas. É por isso que os cientistas usam dados de grandes estudos observacionais e ensaios randomizados para examinar os efeitos na saúde de diferentes padrões alimentares e outros comportamentos que não podem ser estudados como terapias farmacêuticas.
Johnston afirma que o verdadeiro problema é que as pessoas não querem aceitar descobertas que contradizem visões de longa data. "As pessoas têm opiniões muito fortes", disse. “Os cientistas devem ter curiosidade intelectual e estar abertos a desafios para seus dados. A ciência tem a ver com debate, não com defender suas ideias”.
Mas Hu disse que os métodos de Johnston não eram muito objetivos ou rigorosos e que a ferramenta que ele empregou em seus estudos de carne e açúcar poderiam ser mal utilizadas para desacreditar todos os tipos de avisos de saúde pública bem estabelecidos, como o vínculo entre fumo passivo e doenças cardíacas, poluição do ar e problemas de saúde, falta de atividade física e doenças crônicas, gorduras trans e doenças cardíacas.
"Algumas pessoas podem estar se perguntando qual será seu próximo alvo, mas estou preocupado com os danos que já foram causados às recomendações de saúde pública.”
Tradução de Matheus Moreira
(*) Tara Parker-Pope é a editora e fundadora do Well, o premiado site de saúde do consumidor do The Times. Ela ganhou um Emmy em 2013 pela série de vídeos "Life, Interrupted" e é autora de "For Better: The Science of a Good Marriage".
(*) Anahad O’Connor é um repórter da equipe que cobre saúde, ciência, nutrição e outros temas. Ele também é autor best-sellers de livros sobre saúde do consumidor, como "Nunca tome banho em uma tempestade" e "As 10 coisas que você precisa comer".
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