Marcelle de Souza Colaboração para o UOL
José Henrique Tomazela recebe do governo a cada mês as cinco caixas do medicamento da filha Giulia, 7, diagnosticada com cistinose, uma doença genética rara e degenerativa que compromete, entre outros órgãos, o funcionamento de seus rins e da tireoide. Se não fosse uma decisão da Justiça, a família teria que arcar com os cerca de R$ 50 mil por mês com o medicamento sem similar no mercado e capaz de reduzir os efeitos da doença.
O Procysbi é um dos dez medicamentos mais pedidos por via judicial ao Ministério da Saúde, segundo informações conseguidas por Lei de Acesso a Informação.
Só com essa lista de remédios, o governo federal gastou R$ 957,7 milhões no ano passado. A despesa total com remédios frutos de brigas judiciais chegou a R$ 1,2 bilhão em 2016 --quase 7% do orçamento previsto pela pasta para compras de medicamentos e insumos para toda a rede em 2016.
Na lista dos dez medicamentos mais judicializados no ano passado, oito não possuem tratamento correspondente no SUS (Sistema Único de Saúde), ou seja, a via judicial é a única opção. Em comum, a maioria desses pacientes têm diagnóstico de doença rara e dependente de remédios de alto custo.
Mas os gastos públicos com saúde por decisão judicial têm aumentado exponencialmente. O que, na prática, significa uma decisão orçamentária que vem de fora da administração e interfere na distribuição dos serviços que deveriam atender a toda a população.
Isso prejudica o fornecimento de outros serviços no sistema" Ministro da Saúde, Ricardo Barros, na semana passada
Direito universal ou individual?
A chamada judicialização da saúde, quando um juiz decide que o SUS deve pagar um remédio ou tratamento que não é atendido pelo sistema, tem gerado debates sobre os deveres dos governos –tanto federal, quanto estaduais e municipais– e sobre o direito universal à saúde, previsto pela Constituição a todos os brasileiros.
Nos últimos sete anos, o Ministério da Saúde gastou R$ 4,4 bilhões para atender a determinações judiciais para a compra de medicamentos, equipamentos, dietas, suplementos alimentares, gastos com cirurgias, internações e depósitos judiciais. Essas demandas, que somavam R$ 122,6 milhões em 2010, alcançaram a cifra de R$ 1,2 bilhão no ano passado.
Essas ações judiciais refletem uma necessidade de saúde que é legítima. E os entes federativos deveriam se preparar para atender o que não está incorporado ao SUS."
Thaisa Guerreiro, pesquisadora da Fiocruz e defensora pública no Estado do Rio de Janeiro
Alto custo e doenças raras
A maioria do gasto federal com as decisões da Justiça é com medicamentos indicados para o tratamento de doenças genéticas, considerados de alto custo. No entanto, para essas doenças "as alternativas terapêuticas no SUS são paliativas", explica o Ministério da Saúde.
"A gente tem que lutar a cada dia para que a doença não evolua e minha filha tenha uma qualidade de vida razoável, possa brincar e ir para a escola. O medicamento consegue frear uma avalanche de problemas", diz Tomazela, que recebe o remédio para a filha há dois anos. No ano passado, o ministério comprou 63.150 caixas do medicamento para cistinose, que atrasa o desenvolvimento do compromisso renal.
As medidas paliativas propostas pelo Ministério da Saúde não barram a evolução da doença e não têm o mesmo efeito dos medicamentos específicos. Segundo o CRF-SP (Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo), as medidas visam melhorar a qualidade de vida de pacientes com doença avançada, em fase terminal.
Giulia, apesar do baixo peso para idade, consegue levar uma vida relativamente normal, não fosse os horários rígidos para tomar a medicação e as consultas frequentes aos médicos. "O processo para conseguir o remédio pela Justiça é lento e trabalhoso. Você chega a pensar que eles preferem não tratar, deixar morrer", diz Tomazela. A família gasta R$ 1.200 por mês com vitaminas, minerais e outros medicamentos de uso contínuo para a filha.
O debate sobre se os governos devem ser obrigados a pagar por tratamentos de alto custo, que estão fora da lista do SUS ou que ainda não são registrados na Anvisa, deve ser decidido pelo STF (Supremo Tribunal Federal). A questão chegou ao Supremo após ações do governo do Rio Grande do Norte e de Minas Gerais.
Os governos argumentam que os gastos são altos e inesperados para beneficiar poucos pacientes. Essa despesa, segundo eles, ameaçaria outras políticas de saúde.
O ministro relator do caso, Marco Aurélio Mello, entende que o Estado não pode deixar de fornecer remédios de alto custo e fora da lista do SUS a pacientes sem condições de pagar pelo tratamento, desde que tais produtos tenham registro na Anvisa. O julgamento ainda não terminou.
Sem registro na Anvisa
A lista dos mais judicializados tem três remédios sem registro na Anvisa. É o caso do remédio tomado por Giulia, uma droga nova que entrou no mercado em 2013, mesmo ano em que foi aprovada nos Estados Unidos pelo órgão que controla a venda de alimentos e medicamentos no país. No Brasil, porém, ainda não há data para o aval da agência reguladora.
Nos últimos cinco anos, a compra de medicamentos sem registro da Anvisa cresceu 220 vezes. Isso porque o processo de aprovação é demorado e a Justiça acaba sendo o caminho mais rápido para famílias e pacientes.
Segundo o CRF-SP, o registro do medicamento na Anvisa é uma forma de proteção à saúde dos pacientes. "O médico, ao sugerir o uso de um medicamento sem registro no Brasil, deve avaliar aspectos técnicos, como eficácia e segurança do produto, garantindo que os benefícios à saúde humana devem superar seus riscos."
Sem o aval do órgão técnico e apenas com a decisão judicial, há o risco de que juízes obriguem a despesa pública com drogas sem comprovação científica de eficácia. É o caso da pílula do câncer, por exemplo. O governo do Estado de São Paulo recebeu milhares de decisões que obrigavam a distribuição da fosfoetanolamina sintética a pacientes de câncer, sem que o medicamento tivesse qualquer teste de eficácia feito.
Após meses de pesquisa científica e o gasto de cerca de R$ 1,5 milhão, o governo estadual anunciou a suspensão das pesquisas, pois o remédio não mostrou eficácia no tratamento do câncer.
Arte UOL
E como faz para entrar na lista do SUS?
No caso dos medicamentos-órfãos, como são chamados os que não possuem alternativa no mercado, uma das opções para agilizar o acesso pelos pacientes seria incluí-los na lista do SUS.
Segundo a pasta, para que um medicamento seja incluído na Rename (Relação Nacional de Medicamentos) é preciso que ele seja avaliado por uma comissão. Os pedidos devem ser feitos de maneira formal por uma associação de pacientes, por exemplo, e o prazo médio de avaliação é de 134 dias.
Foi o que aconteceu com o Mimpara, nome comercial do Cinacalcete, que deve usado por alguns doentes renais que precisam se submeter à hemodiálise. O medicamento foi incorporado ao SUS em 2015. A compra e a distribuição do medicamento, porém, ainda não tinha sido concluída até o início deste ano, segundo o Ministério. O resultado foi uma enxurrada de ações na Justiça em 2016 (a 6ª maior demanda).
Outro que nem deveria aparecer na lista, já que o fornecimento deveria ser obrigatório, é a Gabapentina, droga utilizada por pacientes com dor crônica, que significou o 10º maior volume de pedidos à pasta no ano passado.
A reportagem do UOL pediu entrevistas de um porta-voz do Ministério da Saúde, mas a pasta preferiu responder aos questionamentos sobre o assunto por nota.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que a compra da Gabapentina é de obrigação das Secretarias de Saúde dos Estados e do Distrito Federal. "Já o medicamento Cinacalcete está em processo de aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde", informou.
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Saúde na Justiça e justiça na Saúde
A querela judicial não é exclusividade do Ministério da Saúde, Estados e municípios enfrentam a mesma judicialização de seus serviços de saúde. Em São Paulo, só em 2016, foram 23 mil ações com pedidos de remédios ao Estado.
Se o ponto mais visível é o montante gasto pelos entes federativos, essas ações também representam dificuldade para juízes, que precisam decidir se o Estado deve ou não ser obrigado a fornecer o tratamento, e muitas vezes uma verdadeira peregrinação de pacientes a defensores e advogados.
Para reduzir os problemas enfrentados pelas gestões com decisões judiciais e, ao mesmo tempo, dar aos indivíduos a garantia de que a Justiça vai defender seus direitos, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) lançou em 2016 o projeto de um banco de dados com informações técnico-científicas para auxiliar juízes em suas decisões. O banco tem laudos, pareceres e pesquisas sobre remédios e procedimentos mais demandados.
"Quando o ordinário não está sendo dado [exames, consultas e remédios que fazem parte do fornecimento obrigatório], a melhor via é a negocial, a mediação. Mas não posso propor mediação para quando o paciente vai buscar um remédio que não está no sistema público. [Com essa ferramenta], o juiz terá mais informações, poderá acessar um parecer técnico para saber se aquele remédio tem provas científicas de que produz determinado efeito", diz o conselheiro Arnaldo Hossepian, do CNJ.
O projeto, que inclui uma plataforma, elaborada por técnicos do Hospital Sírio Libanês em São Paulo, e a capacitação de servidores do Judiciário, pode custar até R$ 15 milhões ao longo de três anos. Segundo o CNJ, o banco de dados deve estar disponível a partir de maio deste ano.
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