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by Dinheiro Vivo (Portugal)
A previsão mais comum durante a pandemia terá sido a do fim da globalização. Todavia, quem pensou que os fundamentos da globalização seriam revertidos ficará desapontado. A globalização progride mais lentamente do que em 1990-2010, de forma diferente, mas não terminou. Longe disso.
Com a pandemia e o conflito da Ucrânia, adquirimos consciência da vulnerabilidade da fragmentação internacional da produção e das cadeias globais de valor baseadas no just-in-time de componentes. Mas já eram identificáveis tendências anteriores que condicionavam este fenómeno: maior proximidade entre produção e local do consumo (exemplo na farmacêutica com as terapias avançadas); progresso tecnológico que reduz a dependência de mão de obra; barreiras ao comércio e ao investimento guerra comercial EUA-China; retoma do controlo de infraestruturas críticas, como redes de telecomunicações; nacionalismo e protecionismo.
Mas, as motivações para os negócios internacionais permanecem inatacáveis. Como referiu Thomas Friedman recentemente em Davos, a globalização não é um processo linear, é curvilíneo. Nos anos 20 do século passado, durante a grande depressão, também não foram poucos os que sentenciaram o fim da expansão comercial global verificada no séc. XIX.
Também lemos que evoluímos para uma globalização por "blocos", como se o surgimento e crescimento de blocos económicos onde são reduzidas as barreiras, não tenha sido justamente uma das principais características da globalização.
A própria vacina da Pfizer é um hino à globalização. É o resultado da assemblagem de quase 300 componentes, provenientes de cerca de 20 países, com perto de uma centena de fornecedores e é distribuída por todo o mundo. A vacina deve-se ao trabalho de pioneiros como a bioquímica húngara Katalin Karikó, com desenvolvimento num laboratório alemão fundado por casal de universitários de origem turca, Ugur Sahin e Özlem Türeci, em parceria com a farmacêutica americana Pfizer, liderada por Albert Bourla, nascido em Salónica, na Grécia, e de origem judia.
O erro na determinação do fim da globalização surge, no meu entendimento, da excitação de anunciar coisas novas, mesmo que não demonstradas, e de uma definição menos clara de como medir "globalização".
A globalização corresponde a um fluxo de integração económica, comercial, política e cultural. Caracteriza-se pela circulação de pessoas, mercadorias, informação, conhecimento e capitais pelo globo, e exige uma coordenação global para atender à crescente sensibilidade dos consumidores para questões de sustentabilidade, resiliência e compliance.
Para avaliar a intensidade do processo de globalização, podemos recorrer a dados do World Investment Report, relatórios do Banco Mundial e OCDE, e à observação de fenómenos sociais.
Investigadores da Oxford Economics, depois de examinar o impacto da pandemia nas economias da Europa e dos EUA, não detetaram fenómenos de reshoring ou redução significativa na comercialização de componentes de produtos acabados. O comércio de bens intermediários recuperou ainda mais rápido do que o comércio geral. Concluíram pela pouca ou nenhuma evidência de desaceleração - muito menos reversão - da globalização.
Um indicador interessante é o da percentagem de comércio mundial no PIB global. A relação comércio mundial/PIB em 2020 foi de 51,62%, uma queda de -8,36% em relação a 2019. Expectável e natural. Todavia, mesmo em ambiente pandémico, representa um crescimento de 12,1% relativamente ao último ano do século XX.
A crise da covid-19 causou uma queda dramática no investimento direto estrangeiro. O IDE caiu 42% em 2020 face ao ano anterior. Todavia, é previsto iniciar a recuperação em 2022 e os valores dos últimos 10 anos superam largamente os verificados na década de 90.
Outra forma de inferir quanto à intensidade da globalização são os pagamentos transfronteiriços (principalmente royalties) pelo licenciamento de propriedade intelectual, que aumentaram cerca de 15 vezes 1990-2019. Identificamos de facto uma mudança - os royalties e a transferência de ativos intelectuais cresceram mais rapidamente do que as exportações, assumindo-se cada vez mais relevantes como modelo de negócios internacionais.
Recorrendo a um outro prisma de avaliação, podemos monitorizar a globalização através da relevância das telecomunicações e da internet. Nos últimos 10 anos os fluxos de informações têm tido um crescimento significativo. Dois terços do mundo estão ligados através de um smartphone, e muito provavelmente a partilha generalizada de vídeos do TikTok, e de outras plataformas, terão tido um enorme peso na decisão de sair da Rússia por parte de grandes marcas multinacionais. Foi depois de um tweet de um parlamentar ucraniano que Elon Musk disponibilizou a Starlink na Ucrânia, evitando o bloqueio da internet terrestre no território.
Um argumento contra a globalização é de natureza ambiental. No entanto, apenas cerca de 6% das emissões de CO2 causadas pela produção de alimentos podem ser atribuídas ao transporte.
Finalmente o argumento da resiliência a crises. Desde quando foi demonstrado que a dependência doméstica é menos arriscada do que a exterior? Quando tivemos um problema de abastecimento equipamentos de proteção individual (EPI), corremos a transformar unidades fabris, e a enunciar necessidade de nos reindustrializarmos e tornarmo-nos independentes na produção de máscaras cirúrgicas. Meritório, sem dúvida. Mas que acontece se a próxima pandemia não resultar da transmissão através do sistema respiratório? Se for um vírus transmitido por artrópodes (insetos)? Ou se se transmitir por meio de secreções? Reconvertemos tudo? Corremos atrás do problema?
A Europa assistiu, durante um longo período, a um processo de desindustrialização que era visto como um processo normal, resultante da evolução de uma sociedade moderna, altamente tecnológica, que necessitava de ter acesso a produtos com preços mais baixos.
Todavia, mesmo antes da pandemia, a UE já se vinha a preocupar com o processo de reversão do declínio da indústria. Por um motivo fundamental, a desindustrialização foi acompanhada por uma redução no crescimento da produtividade. Reduziu-se a capacidade de aumentar o VAB na Europa, perdeu-se know-how e mão-de-obra especializada.
Neste sentido, a reindustrialização terá de estar relacionada com o relançamento da produtividade. Isto é particularmente importante em Portugal, uma vez que temos uma das mais baixas produtividades da União Europeia (65% da média da UE27).
A produção industrial portuguesa perdeu relevância nas últimas décadas, sendo que representava 27% do PIB em 1980. No primeiro trimestre de 2022, o valor acrescentado bruto da indústria representava cerca de 12% do PIB (Banco de Portugal). Esta percentagem está abaixo da média da UE (15%) e claramente abaixo de países como a Lituânia (16%), Hungria (17%) e Roménia (17%) (Banco Mundial, 2021).
Mais importante que a reindustrialização, é o tipo de reindustrialização. Este processo poderia ser feito por backshoring, com o retorno da produção e fabricação de mercadorias ao país de origem. Porém, julgo que no nosso caso não será determinante, restando-nos duas opções. Ou nos focamos nas estruturas pré-existentes, que geram valor, e aumentamos a sua dimensão, massa crítica, inovamos e conseguimos fazê-las desenvolver. Ou então temos uma via completamente diferente e, às vezes, parece-me que tem sido essa a opção, que é uma estratégia de diversificação e de procura de outro know-how que não existe em Portugal.
Julgo que o país devia focar-se a identificar quais são as áreas existentes que têm potencial para alavancar o crescimento económico, para criar valor e inovar. E, aqui, a indústria farmacêutica tem uma posição única.
A indústria farmacêutica tem uma produtividade superior a todas as outras indústrias transformadoras. É uma indústria com um elevado valor acrescentado, com maior valor adicionado por pessoa empregada do que, por exemplo, a indústria automóvel ou a indústria aeroespacial. Tem um emprego qualificado superior, cerca de 45%, do que, por exemplo, outras indústrias, como a eletrónica ou como as ligadas aos sistemas informáticos, cerca de 32%.
Mas para fazermos esta reindustrialização temos de perceber algumas coisas.
Em primeiro lugar, precisamos de escala. Quando fazemos a avaliação das empresas portuguesas face às suas congéneres europeias, comparamos muito bem relativamente ao investimento, mas comparamos muito mal relativamente à dimensão. Somos um país periférico com 10 milhões de habitantes. As exportações, dentro da União Europeia, de produtos farmacêuticos são extremamente influenciadas pela dimensão do país de origem. Portanto, temos de ganhar escala. Através de fusões e consolidação. Através de sinergia e complementaridade em termos de parques industriais e de investimento. Através da criação de clusters, que permitam ganhar massa crítica, conhecimento e especialização.
Outro ponto é a capacidade de investimento. A indústria farmacêutica tem de ser considerada estratégica quando estamos a falar da avaliação de grandes projetos de investimento.
Um terceiro ponto crucial a nível nacional, é ter um ecossistema tecnológico e de conhecimento que nos permita dar saltos em valor.
Por fim, há pontos de amplitude europeia a considerar: as dependências estratégicas e a forma de as ultrapassar. Existe um plano de ação para matérias-primas críticas na Europa, e claramente a indústria farmacêutica é muito vulnerável de matérias-primas exteriores, não apenas a nível de substâncias ativas. Mas uma análise crítica destas dependências estratégicas, tem de ser acompanhada de políticas plurinacionais. É a única forma de ter competitividade dentro da União Europeia com matérias-primas que sejam equivalentes àquelas que importamos.
Em tudo precisamos de escala. Parafraseando mais uma vez Thomas Friedman, "se você não tem escala, você tem um hobby". A reindustrialização de Portugal e da Europa tem de ter escala, e valor acrescentado. A indústria farmacêutica nacional está disponível para isso.
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