Estudo para criar vacina contra a malária já duram 30 anos Foto: Getty Images
Raras vezes — se é que houve alguma — na história da humanidade se falou tanto em vacina e se depositou tantas expectativas no desenvolvimento de uma delas.
Mas a história das pesquisas nessa área mostra que é preciso cautela. O mais comum é levar anos ou até décadas para criar um imunizante – ou mesmo nunca se conseguir.
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Entre as dificuldades para desenvolver uma nova vacina estão vírus e bactérias que evoluem muito rapidamente, ou seja, sofrem mutações frequentes, até de uma geração para outra. Então, um imunizante que serve para uma delas não vai servir para a próxima; os micro-organismos ficam sempre na frente na corrida com os cientistas. Existem também aqueles mais complexos, como os protozoários, que podem ter várias fases de seu ciclo de vida dentro do hospedeiro, no caso o ser humano.
Há ainda os desafios econômicos e comerciais, relacionados principalmente às chamadas doenças negligenciadas. “Há dois obstáculos para desenvolver uma vacina, o cientifico, imposto pela biologia da doença ou patógenos, do qual não temos controle mas que pode ser vencido; e o outro, que é vergonhoso, a falta de investimento”, diz Walter Beys da Silva, da Faculdade de Farmácia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Muitas doenças são negligenciadas, por inúmeras razões.”
Muito disso tem a ver com o fato de que o desenvolvimento de um imunizante é processo demorado e caro. O pesquisador Luiz Carlos Dias, professor titular do Instituto de Química, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), explica que as candidatas a vacinas devem passar inicialmente pela fase pré-clínica em modelos de animais, como ratos, camundongos e macacos, para testar segurança e se produzem alguma resposta imunológica de defesa.
As três fases
Se aprovadas, passam por avaliação em testes clínicos em seres humanos, primeiro de fase 1, em pequeno grupo de voluntários saudáveis, no qual se avalia a segurança, se causa algum tipo de efeito colateral adverso e a imunogenicidade, ou seja, a capacidade de gerar imunização. Se bons resultados são obtidos, segue para estudo clínico de fase 2, com centenas de participantes, coletando informações sobre segurança, doses, horários, modos de administração e imunogenicidade.
Se aprovadas, seguem para a fase 3, num universo maior de pessoas, com milhares de indivíduos de vários países, “Esta etapa fornece resposta definitiva da eficácia, de proteção e segurança”, explica Dias. “Se a vacina se mostra segura e eficiente, é aprovada e após registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pode ser produzida em larga escala no Brasil e distribuída para a população. Isso leva tempo, no entanto. A da caxumba, por exemplo, foi uma das mais rápidas desenvolvidas até hoje e demorou 4 anos.”
De acordo com Silva, no rol das doenças negligenciadas estão, principalmente, as tropicais (zika, dengue, Chagas, chikungunya e malária, por exemplo), que acometem populações pobres, principalmente em países economicamente frágeis. “Se não tem retorno financeiro (mercado) a indústria não terá o apelo comercial para justificar o desenvolvimento e, neste caso, o investimento na pesquisa depende de recursos de países desenvolvidos (que tem outros focos), de instituições filantrópicas e dos países acometidos que não têm recursos, de fato, ou não têm interesse (incluo o Brasil aqui)”, diz. “Ou seja, fica praticamente inviável.”
Sem vacina contra a Aids
Quanto aos obstáculos biológicos, um exemplo muito ilustrativo é o caso da aids. Em abril de 1984, pouco depois do surgimento da doença, autoridades da área de saúde do Estados Unidos anunciaram que uma vacina para prevenir a disseminação do vírus HIV, o agente causador da enfermidade, estaria pronta dali a dois anos. Como se sabe, mais de 36 anos depois tal imunizante ainda não existe, apesar dos esforços de cientistas do mundo inteiro durante todo esse período.
Para o médico Paulo Sérgio Ramos de Araújo, professor adjunto de Doenças Infecciosas e Parasitarias, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), nas últimas três décadas, muito se avançou, mas talvez ainda se esteja distante de uma vacina que tenha efeito protetor contra o HIV.
“Esta dificuldade é multifatorial, mas se deve principalmente à complexidade deste vírus que possui uma grande capacidade adaptativa, de forma que alterações nas suas proteínas, codificadas por mutações genéticas, colocam obstáculo na obtenção de uma eficaz”, explica, “Em contrapartida, todos os testes realizados até agora fizeram a ciência compreender vários mecanismos da vacinologia e que tem contribuído muito para a medicina.”
Dias explica que as vacinas usam um antígeno (proteína), que é uma substância estranha ao corpo e que desencadeia uma resposta imunológica, que é a produção de anticorpos e/ou de células citotóxicas (que matam células infectadas). “No caso de vírus, nós precisamos de anticorpos chamados neutralizantes, que, como o nome diz, o neutralizam e o impedem de entrar nas células”, diz.
Mas também é necessário uma resposta celular, produzindo células citotóxicas (linfócitos tipo TCD4 e TCD8), glóbulos brancos que organizam e comandam a resposta diante dos agressores. “São esses linfócitos TCD4 e TCD8 que memorizam, reconhecem e destroem os microrganismos estranhos que entram no corpo humano”, informa. “Algumas pessoas têm poucos anticorpos neutralizantes circulantes, mas podem ter bastante células citotóxicas. São muito importantes esses dois tipos de resposta.”
De acordo com Dias, a aids é uma doença grave, pois o HIV, seu vírus causador, ataca justamente os linfócitos TCD4, ligando-se a um componente da membrana dessa célula e penetrando no seu interior para se multiplicar. “O sistema imunológico do nosso organismo perde a capacidade de defesa e o corpo fica mais vulnerável a doenças”, explica.
O imunologista Sérgio Surugi de Siqueira, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), lembra de outro desafio: as vacinas são diferentes umas das outras.
“Então, quando se tenta desenvolver uma contra um patógeno específico, se encontra dificuldades completamente distintas.”, diz. “De um modo geral, as dificuldades são, primeiro conhecer as características moleculares do micro-organismo contra o qual se pretende proteger, depois vem a produção de um antígeno vacinal (que é o que se introduz no organismo para gerar resposta imunológica), por fim temos que realizar testes para saber se o imunizante é seguro e eficaz (capaz de gerar proteção sem causar danos graves às pessoas). Todas estas etapas custam muito tempo e dinheiro.”
Dengue, zika e chikungunya
A vacina contra a dengue, por exemplo, segundo ele, apresenta dificuldades relacionadas com a segurança. “Existem quatro variantes do vírus da doença e um imunizante seguro e eficaz contra ela deve proteger contra todas elas”, diz. “Se por acaso, alguém responde a três dos tipos e entra em contato com o quarto na forma selvagem, existe um risco aumentado de que este indivíduo adquira a forma grave da doença, ou seja, ao invés de proteger, a vacina pode aumentar o dano. Mas isso já está sendo resolvido com as mais recentes.”
Apesar desses obstáculos, já existe uma vacina licenciada para a dengue desde 2015, mas ainda não disponível no Programa Nacional de Imunizações (PNI). Além disso, há vários grupos de pesquisa tentando desenvolver novos imunizantes para a doença. “O Brasil vem tentando produzir uma desde 2009”, conta Dias. “O Instituto Butantan está conduzindo estudos em Fase 3, com uma baseada em vírus atenuado e os resultados devem ser divulgados em 2021. A companhia japonesa Takeda e a americana Merck Sharp & Dohme (MSD) também vêm trabalhando para desenvolver alguma para a dengue.”
No caso da zika e chikungunya, Siqueira diz que são doenças importantes, mas de incidência não tão grande no mundo, notadamente nos países mais desenvolvidos, onde estão os centros mais sofisticados de pesquisa e desenvolvimento de vacinas. “Por isso há um certo desinteresse em pesquisar e desenvolvê-las”, explica. “De todos os modos, alguns desses imunizantes já estão em fase de desenvolvimento, inclusive aqui no Brasil e logo teremos a condição de nos proteger contra estas doenças também.”
Malária
Nas lista das enfermidades para a quais é difícil criar uma vacina está com destaque a malária. “Além de ser uma doença tropical e, por isso, não despertar interesse comercial, tem também o desafio biológico como ponto forte”, diz Silva. “Ela é causada por parasitas do gênero Plasmodium, que são protozoários com ciclo de vida complexo, além de ter maior complexidade estrutural e genética, se comparado a vírus e bactérias, e ainda temos entendimento limitado sobre a resposta imune gerada na infecção.”
De acordo com Silva, a exposição prévia ao parasita, por exemplo, não garante imunidade, o que por si só já mostra a dificuldade de se induzir uma resposta imune eficiente, duradoura e preventiva, que é o objetivo de uma vacina. “Então, para organismos mais complexos, como o Plasmodium, é ainda mais desafiador o desenvolvimento de um imunizante, porque os alvos no agente causador da doença são maiores em número e complexidade”, explica. “No caso da malária, o agente causador, por exemplo, apresenta fases diferentes do seu ciclo de vida no hospedeiro humano. Este patógeno, portanto, acaba mudando sua apresentação durante o progresso do processo parasitário. Isto tudo ajuda a explicar as dificuldades em se obter uma vacina eficiente para esta doença. Mas investimento e pesquisa podem ultrapassar esta barreiras.”
De certa forma, pelo menos em parte já foram ultrapassadas. “O mundo vem investigando um imunizante para a malária há aproximadamente 30 anos”, conta Dias. “Hoje temos a Mosquirix.” Trata-se de uma vacina, desenvolvida pela GlaxoSmithKline (GSK), uma companhia farmacêutica multinacional britânica, que foi aprovada e já está sendo usada, desde 2019, para imunizar crianças de 5 a 17 meses, na África Subsaariana. “Sua eficácia é limitada [menos de 40%], mas podemos considerar como um grande avanço, já que levou quase três décadas para seu estudo, testes e registros”, completa Paulo Sérgio Ramos de Araújo,
Apesar das dificuldades de desenvolver vacinas para algumas doenças, os pesquisadores dizem que para nenhuma delas isso é impossível. “Impossível é uma perspectiva de momento, não uma realidade”, diz Siqueira. “O que não pode ser feito (ou não é prioridade) hoje, poderá ser amanhã. O desenvolvimento de imunizantes depende de pesquisas sofisticadas e muitos recursos.”
O mecanismo geral de ação das vacinas é conhecido há muito tempo, no entanto, lembra ele. “Deste modo, tornar uma possível depende muito mais de uma concentração de esforços do que propriamente de uma dificuldade técnica”, explica. “Obviamente que existem patógenos que por sua natureza, exigem uma estratégia de produção (aquilo que chamamos de plataforma) mais complexa, cara e demorada para ser obtida, contudo eu não diria que um determinado imunizante é impossível. Nunca.”
Fonte: Terra
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