Valor Econômico
Autor: Iran Gonçalves Jr.*
04/10/19 - Nos últimos 20 anos houve um grande aumento no número de trabalhos científicos publicados sobre o fenômeno da espiritualidade e sua relação com a saúde e a doença. Não há uma definição precisa do termo “espiritualidade” e ele guarda relação pelo que se entende como “religiosidade”.
A espiritualidade abrange uma sensação do ser humano de estar em paz consigo mesmo e com os outros, de acreditar que sua vida tem um propósito transcendente; essas crenças pessoais se manifestam na preocupação com os outros, com a família, com a comunidade, com a natureza, enfim, com causas maiores que apenas sua própria individualidade.
Se, à descrição acima, se acrescentam práticas religiosas ou a noção de Deus ou deuses, tem-se a descrição do que é a “religiosidade”. A dificuldade de separar estes conceitos faz com que muitos autores não diferenciem os termos com rigor em suas pesquisas ou os utilizem quase como sinônimos.
Independente das questões metodológicas, o interesse em pesquisar esse fenômeno surgiu da constatação que as pessoas ditas espiritualizadas lidam melhor com sua condição de saúde e, muitas vezes, vivem mais.
Dada às diferentes práticas de espiritualidade ou religiosidade nas diferentes culturas ou nos seus diferentes estratos sociais, é difícil determinar quais as variáveis mais importantes que explicam este efeito protetor.
Uma das variáveis mais estudadas é a capacidade de enfrentamento ante situações de estresse. Estudos demonstram que indivíduos com maior espiritualidade ou religiosidade lidam melhor com situações de estresse, ficando menos expostos aos efeitos deletérios dos hormônios e demais substâncias liberadas pelo organismo nestas situações.
Doenças crônicas ou que colocam a vida em risco, como câncer, são situações de alto estresse orgânico e emocional, seja pelo diagnóstico, seja pelo tratamento prolongado, agressivo, doloroso.
Conseguir lidar com esses desafios de um modo mais tranquilo leva a uma maior e melhor capacidade de enfrentamento da doença, auxilia na aderência ao tratamento e na tomada conjunta de decisões. Essa maior paciência e paz interior toma a qualidade de vida melhor durante o tratamento. Pacientes com maior espiritualidade ou religiosidade costumam necessitar menos de medicamentos ansiolíticos e analgésicos, por exemplo.
Outra área de estudo relacionada diz respeito aos hábitos de vida dessas pessoas, antes de ficarem doentes. Indivíduos com que se declaram espiritualizados ou religiosos fazem menor uso de álcool e drogas, são pessoas mais gregárias, menos propensos a se sentirem sozinhas ou abandonadas, menos ansiosas ou deprimidas. Acredita-se que estas características possam evitar ou retardar o aparecimento de algumas doenças como, por exemplo as doenças cardiovasculares.
Compaixão e altruísmo com as outras pessoas são características dos indivíduos com maior espiritualidade e religiosidade. Essas características, quando estão presentes nos cuidadores dos indivíduos doentes, auxiliam em muito o tratamento.
Paciência, compreensão, disponibilidade, amor, parecem palavras pouco afeitas aos textos médicos científicos, mas fazem toda a diferença no cuidar do paciente.
Geralmente os cuidadores são os familiares mais próximos, que moram com o paciente e que vivem uma sob uma pressão emocional igual ou maior que seu ente querido doente. Não há data ou hora para o paciente complicar, piorar ou simplesmente se queixar amargamente de seus problemas. Essa situação muitas vezes se estende por décadas, grande parte de uma vida dedicada ao próximo. Familiares com alto grau de espiritualidade ou religiosidade conseguem sublimar estas dificuldades, sentem-se agradecidos e recompensados pela oportunidade de cuidar de seu ente querido.
Para os profissionais de saúde, maior espiritualidade ou religiosidade leva a uma melhor capacidade lidar com as difíceis situações do dia a dia. Profissionais que trabalham com pacientes com doenças graves, com alta mortalidade, com frequência desenvolvem quadros de depressão ou ansiedade. Maior espiritualidade ou religiosidade podem aumentar a resiliência dos profissionais e diminuir o desgaste profissional
Feliz do médico que já escutou a frase: “Doutor, só de vê-lo já me sinto melhor...”.
Espiritualidade pode ser ensinada? Talvez possamos dizer que pode ser resgatada, redescoberta. Na ocasião de um diagnóstico grave, que prenuncia um tratamento doloroso e prolongado, cabe aos familiares e cuidadores procurar se aproximar dessa dimensão do paciente e auxiliá-lo na sua expressão. A decisão de expressar a espiritualidade ou religiosidade cabe, porém, apenas ao paciente. Os hospitais devem ter programas que deem suporte e espaço para essas manifestações.
Lidar com os desafios da espiritualidade e religiosidade na doença não é tarefa fácil.
Muitas vezes, nos momentos de maior dificuldade, o paciente pode experimentar grande desconforto espiritual. Pode mesmo colocar em dúvida o que pensava ser uma fortitude absoluta.
Por que eu? Por que com meu ente querido? Por que isso acontece com pessoas boas? Como vou sobreviver após essa perda? Por que Deus não me responde? Deus está se vingando... São questões que causam grande sofrimento e que podem surgir nos momentos mais agudos e que demandam experiência e capacitação dos envolvidos.
Quando as questões são expressas em termos religiosos, acesso a ministros religiosos da fé do paciente devem ser permitidos e estimulados.
Leitor amigo, este foi um texto difícil de escrever. As informações ainda são precárias, os estudos ainda são iniciais. Não há padronização de condutas ou procedimentos testados pelo tempo. Porém, a espiritualidade e a religiosidade são dimensões insofismáveis do humano. Quanto mais ameaçada a existência, mais estas dimensões se fazem sentir.
Apesar dos estudos ainda serem quase sondagens do papel da espiritualidade e religiosidade na saúde e na doença, sem a robustez estatística a que estamos acostumados quando lemos matérias médicas, não consigo deixar de pensar que já há algumas conclusões nestas pesquisas.
Nenhum dos estudos realizados demonstrou que para nossa melhor saúde física, mental e emocional é melhor sermos egoístas ao invés de altruístas, indiferentes ao invés de solidários, pessimistas ao invés de otimistas, inclementes ao invés de piedosos, vivermos solitários e rancorosos ao invés de procurar conviver em harmonia com os outros. Essas conclusões já estão dadas. Cabe a nós incorporá-las em nossa vida.
(*) Iran Gonçalves Jr. é médico e escreve neste espaço mensalmente
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