Imagem de Gerd Altmann por Pixabay
Como você reagiria se alguém dissesse que a mesma tecnologia por trás das chamadas fotos deepfake poderia em breve produzir medicamentos novos e melhores para os seus pacientes?
Embora pareça, essa não é uma notícia falsa.
Pesquisadores estão usando modelos de inteligência artificial (IA), como o DALL-E da empresa OpenAI, que traduz texto em imagens, para criar proteínas inéditas do zero. Nesse contexto, esses desenvolvimentos podem ser a base de futuros medicamentos ou vacinas.
"Pela primeira vez, estamos vendo sistemas de IA capazes de gerar em segundos estruturas proteicas altamente realistas de forma controlável ", disse a Dra. Namrata Anand, Ph.D., bioengenheira e cientista da computação.
Em 2022, a Dra. Namrata usou essa tecnologia para desenvolver um modelo que deu origem à Diffuse Bio, empresa fundada por ela. Também naquele ano, uma proteína inédita criada com IA por pesquisadores da University of Washington, nos Estados Unidos, obteve aprovação clínica no exterior como uma vacina anticovídica.
Um anticorpo inédito desenvolvido pela empresa de biotecnologia Absci para o tratamento da doença inflamatória intestinal está sendo avaliado em estudos experimentais com expectativa de ser submetido a ensaios clínicos em 2025. Outras iniciativas turbinadas por IA se concentram no aprimoramento de proteínas conhecidas ou na descoberta de maneiras de atuar sobre proteínas consideradas não tratáveis.
A tecnologia ainda está em estágio inicial, mas um ponto de virada já foi atingido, e os avanços estão começando a ter efeitos concretos na descoberta e no desenvolvimento de medicamentos. O presidente-executivo Sean McClain espera que a abordagem aprimorada por IA usada pela Absci reduza o tempo e os custos necessários para levar novas moléculas ao mercado, saindo de um processo com duração de cinco anos e um custo de até US$ 100 milhões para um processo de dois anos que custa US$ 15 milhões.
"Estamos verdadeiramente no início de uma nova era na economia relacionada à biotecnologia", disse Sean. "Em vez de investir de forma tradicional US$ 100 milhões em um único medicamento, agora você pode investir em de cinco a dez [fármacos] e levá-los à prática clínica muito mais rápido."
Começando do zero
As proteínas — existem cerca de 20.000 no corpo humano — realizam grande parte dos processos necessários à vida. Elas formam a estrutura das células, mas também enviam mensagens importantes e processam sinais. Algumas auxiliam no desenvolvimento embrionário ou impedem que as células se tornem cancerígenas. Os anticorpos que combatem doenças são proteínas. O mesmo acontece com enzimas e muitos hormônios.
As proteínas são formadas por cadeias de aminoácidos eletricamente carregados que se atraem ou repelem, causando enovelamentos que dão a elas formatos distintos. Esses formatos ajudam a determinar a função de cada proteína.
Há muito tempo, pesquisadores tentam entender de que forma as proteínas se enovelam na esperança de aprender a construí-las do zero. Até 2017 — o ano do avanço no desenvolvimento de proteínas para o combate da gripe — o design de proteínas ainda era bastante ineficiente. "O software simplesmente não funcionava de modo confiável quando era necessário", disse Sean.
No entanto, desde então, a IA entrou em cena. Em 2022, a AlphaFold Protein Structure Database, uma base de dados de acesso aberto desenvolvida pelo Google DeepMind e pelo European Bioinformatics Institute, disponibilizou uma valiosa coleção com mais de 200 milhões de previsões de estruturas de proteínas para qualquer pesquisador interessado. No processo de descoberta de medicamentos, essas estruturas proteicas podem servir como pontos de partida para encontrar um "acerto" inicial a ser otimizado.
Esse "grande conjunto de dados de proteínas de alta qualidade" é o único do gênero, disse o Dr. Gregory Bowman, Ph.D., professor ligado à University of Pennsylvania, nos Estados Unidos. "Porém, isso não significa pegar a AlphaFold, selecionar a opção 'descobrir novos medicamentos' e pronto, tudo resolvido."
Existe um grande problema: "Grande parte das proteínas é considerada não tratável", disse o Dr. Gregory. Ou seja, essas proteínas não possuem cavidades nas quais os medicamentos poderiam se ligar ou essas cavidades são muito discretas para serem encontradas pela maioria das tecnologias.
O laboratório do Dr. Gregory usou simulações computacionais para localizar esses “sítios de ligação ocultos” e em seguida foram realizados experimentos para confirmar essas previsões. Os pesquisadores criaram um conjunto de dados e o usaram para treinar uma rede neural, chamada PocketMiner, que usa aprendizado de máquina para prever onde poderiam estar esses sítios ocultos.
No ano passado, a PocketMiner previu localizações de sítios ocultos em quase 36 estruturas proteicas relacionadas ao câncer, abrindo um caminho para possíveis novos tratamentos.
"Acredito que esses sítios ocultos estão presentes na maioria das proteínas, o que significa que eles são relevantes para a maioria dos cânceres", afirmou o Dr. Gregory.
O laboratório liderado por ele tem feito parcerias com startups nas áreas de câncer de mama e melanoma uveal (uma neoplasia ocular). Também estão sendo explorandos alvos para doenças como leucemia e câncer de pâncreas.
Essa pesquisa pode complementar as iniciativas de desenvolvimento a partir do zero, disse Sean. "Na minha opinião, elas são duas metades da mesma moeda. Se você tiver uma previsão muito boa de onde [o medicamento consegue] se ligar, então você pode desenvolver um fármaco específico para esse sítio."
Além disso, se os pesquisadores gerarem milhares de proteínas a partir do zero, um modelo preditivo sólido pode ajudar a determinar qual desenvolvimento tem mais chances de funcionar. "Existe uma maneira de combiná-los", disse Sean.
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Gerando estruturas e sequências proteicas
Algumas proteínas são mais desafiadoras de se projetar do que outras. Considere os peptídeos helicoidais — cadeias de aminoácidos curtas, flexíveis e em forma de espiral, encontradas no organismo em concentrações muito pequenas. Projetar proteínas que possam se ligar a estruturas tão discretas é um desafio. No entanto, uma equipe do Baker Lab, parte do Institute for Protein Design da University of Washington, nos Estados Unidos, usou duas ferramentas de aprendizado profundo para alcançar esse objetivo.
O trabalho, publicado em dezembro do ano passado, pode tornar o diagnóstico de doenças mais barato e rápido, além de resultar em compostos que se liguem a hormônios para bloquear a atividade destes. Por exemplo, as proteínas projetadas pelos pesquisadores têm como alvos o paratormônio (PTH), um biomarcador do câncer de paratireoide, e o neuropeptídeo Y, associado à doença de Alzheimer. A proteína desenvolvida pelos cientistas detectou o PTH, conforme averiguado numa espectrometria de massa, e ativou biossensores proteicos responsivos ao PTH.
"A produção de anticorpos para alguns desses alvos — anticorpos que são considerados as moléculas padrão-ouro para o diagnóstico ou tratamento —, pode levar meses", disse a autora principal do estudo, a Dra. Susana Vazquez Torres, Ph.D., pesquisadora ligada ao Baker Lab. Porém, com a IA, os pesquisadores podem gerar milhares de proteínas em apenas um dia.
No Baker Lab, a pesquisadora Dra. Susana Vazquez Torres avalia bactérias que codificam proteínas inéditas projetadas por meio de IA para se ligar a toxinas presentes em venenos de cobras.
Os cientistas começam com um peptídeo helicoidal alvo (como o PTH) cercado por uma distribuição aleatória de átomos, como uma “nuvem de ruído". Em seguida, um modelo de difusão "reduz o ruído" desses átomos, fazendo com que eles se enovelem no formato de uma proteína. Essa tecnologia se baseia nos modelos de IA anteriormente mencionados que transformam texto em imagem, que são "treinados" com coleções de imagens e textos on-line.
"A difusão é uma tecnologia muito poderosa, pois você não precisa necessariamente pré-especificar o formato da proteína", disse a Dra. Susana.
O Baker Lab treinou seu modelo de difusão com imagens do Protein Data Bank, um vasto arquivo com dados de estruturas tridimensionais de proteínas. O modelo pode gerar rapidamente milhares de diferentes estruturas proteicas com vários formatos que se enovelam de diferentes formas ao redor do alvo. Em seguida, o algoritmo de aprendizado profundo do laboratório, denominado Protein MPNN, gera sequências de aminoácidos que interagem com esse alvo. Nesse momento, o modelo classifica os ligantes de maior afinidade, que então são estudados de forma mais detida.
A Dra. Susana vem aplicando essas mesmas técnicas para projetar proteínas inéditas que têm como alvo os componentes mais tóxicos do veneno de cobra. Ela espera que essas proteínas possam se tornar novos tratamentos para países em desenvolvimento, nos quais os acidentes com picadas matam cerca de 100 mil pessoas por ano e, frequentemente, resultam em amputações.
As proteínas inéditas são mais baratas de produzir do que os tratamentos atuais e podem suportar as altas temperaturas desses locais, de acordo com a Dra. Susana. "Com o design de proteínas, é possível criar um ótimo aglutinante no intervalo de uma semana. Agora é o momento de procurar aplicações interessantes nas quais possamos gerar impacto", disse ela.
Enfrentando o desafio dos anticorpos
O mercado de anticorpos terapêuticos vale cerca de US$ 247 bilhões e deve crescer 14% até 2028, sendo que a IA está ajudando a impulsionar essa expansão.
Os anticorpos passam por um processo de evolução natural no organismo, ganhando eficácia contra um vírus ao longo de algumas semanas, segundo o Dr. Brian Hie, Ph.D., professor assistente vinculado à Stanford University, nos Estados Unidos. Com o aprendizado de máquina, um subtipo de IA que treina modelos para aprender continuamente com dados, o Dr. Brian e sua equipe guiam a evolução dos anticorpos em laboratório.
Os modelos de linguagem de proteínas usados pelos pesquisadores preveem quais mutações têm mais chances de ocorrer entre todas as mutações possíveis em uma sequência de anticorpos.
O processo é muito mais rápido do que as abordagens tradicionais que introduzem aleatoriamente mutações em grandes coleções de anticorpos e em seguida usam técnicas de engenharia de proteínas (como a apresentação em superfícies de leveduras) para avaliar a atividade de ligação proteica. "Nosso objetivo era não ter que rastrear um milhão de anticorpos toda vez que quiséssemos desenvolver um anticorpo para ter maior afinidade ", disse o Dr. Brian.
Esses anticorpos “evoluídos” podem se tornar a base para terapias novas ou aprimoradas. Em um estudo em pré-impressão publicado em dezembro do ano passado, os pesquisadores de Stanford usaram anticorpos que perderam a eficácia contra a variante Ômicron do SARS‑CoV‑2 a fim de criar novos anticorpos mais eficazes contra variantes virais. O laboratório do Dr. Brian também está explorando aplicações na área oncológica, já que "os tumores estão constantemente evoluindo em relação à quimioterapia ou imunoterapia", disse ele.
As alças flexíveis dos anticorpos muitas vezes atrapalham os modelos de IA, mas os avanços no design de novos produtos continuam ocorrendo. Em um estudo em pré-impressão publicado em março, o Baker Lab mostrou de que forma uma versão ajustada do seu modelo de difusão — treinado com estruturas de anticorpos adicionais — poderia projetar anticorpos capazes de reconhecer um alvo farmacológico relacionado ao câncer e proteínas bacterianas e virais relacionadas à gripe e ao SARS-CoV-2. Cerca de um em cada 100 designs atingiu os alvos em testes de laboratório.
A Absci está perto de entregar um anticorpo aprimorado para pacientes com doença inflamatória intestinal, graças aos seus modelos de IA. Estudos pré-clínicos sugerem que o anticorpo anti-TL1A precisaria de uma posologia menos frequente e ofereceria maior potência e melhor segurança clínica em comparação com moléculas concorrentes atualmente em avaliação em estudos clínicos.
"Não basta dizer que é possível projetar um anticorpo inédito com IA", disse Sean, presidente-executivo da empresa. "A grande inflexão será quando houver uma comprovação clínica de que esses modelos estão cumprindo o que prometem."
Esta é a terceira de uma série de três partes do Medscape sobre o impacto da IA na descoberta e desenvolvimento de medicamentos. A Parte 1 é sobre o papel da IA no design de ensaios clínicos mais rápidos e eficazes. A Parte 2 é sobre o uso da IA para encontrar novas aplicações para medicamentos existentes.
Créditos: Medscape
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